O filme, na Netflix, que o deixará doente mas, mesmo assim, você deveria assistir

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A Coreia do Sul é um país singular. Antes um território situado na península de mesmo nome ao nordeste da Ásia, composto por duas nações soberanas ao norte e ao sul, a Coreia sempre viveu sob tensão constante, cenário que se agravou muito a partir de 1950, quando da eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional. A Guerra da Coreia só veio a cabo três anos depois, graças a um armistício. Tomando a história oficial por base, a nenhum dos dois foi conferida a vitória, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente. O país dispõe de um governo democrático, cujo sistema econômico, sempre em visível crescimento, é responsável por garantir à população padrão de vida comparável ao de muitas sociedades europeias e mesmo de algumas cidades dos Estados Unidos. Só isso já seria o bastante para que todas as sociedades ocidentais tivessem ao menos uma ponta de inveja e a vontade de tomar a Coreia do Sul por inspiração; contudo, a produção audiovisual sul-coreana, impecável do ponto de vista técnico e tratando com coragem feroz de temas os mais díspares e obscuros da natureza humana, é o que mais tem impressionado o mundo, por seu alcance mercadológico, pela facilidade de absorção e, por óbvio, pela beleza.

O diretor sul-coreano Hwang Dong-hyuk já era um fenômeno de audiência muito antes da série Round 6, febre entre espectadores de diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade, hábil ao expor a grande miséria da alma humana, cujas dimensões sempre podem surpreender, apresentada sob sua forma mais reles, a necessidade do dinheiro para a sobrevivência física, e a partir daí toma corpo o enredo, momento em que quem assiste conhece o jogo de que fala a história, e participa dele, ainda que indiretamente. Em 2011, Hwang Dong-hyuk havia deixado boquiaberto o público mais afeito ao que o cinema produz de mais chocante — mérito (ou culpa) não do cinema, propriamente, mas do ser humano, essa fera indomável que consegue subjugar seu semelhante dos jeitos mais vis. A grande participação do diretor nisso é valer-se de seu talento para contar histórias a fim de fazer a realidade que se fica conhecendo na tela mais próxima, mais verossímil, mais possível. Aquilo que se vê é um pedaço de cada um, o pedaço torto, o pedaço que se perdeu. O pedaço apodrecido do homem.

“Em Silêncio” é a versão de Hwang Dong-hyuk para a história real de uma série de abusos contra alunos de Gwangju Inhwa, a instituição voltada ao ensino de deficientes auditivos retratada no longa. Os crimes tiveram início em 2000 e alongaram-se por três anos, até 2003. O Ministério Público da Coreia do Sul chegou a nove casos de estudantes surdos humilhados, surrados e estuprados por professores e pelos diretores da escola. O mais novo tinha apenas cinco anos.

O roteiro de Hwang Dong-hyuk parte da chegada de Kang In-ho, o professor recém-contratado vivido por Gong Yoo. A performance do ator, o típico herói oriental — incorruptível, amoroso, estoico e, por que não?, bonito —, conquista de imediato. Kang In-ho logo se dá conta de que alguma coisa vai mal, uma vez que, por mais que se empenhe, não chega ao coração de seus alunos. O mestre vai se cercando de toda a delicadeza a fim de ganhar a confiança de seus novos pupilos; à medida que a história avança, o protagonista começa a entender a razão para tanta desconfiança, momento em que o desempenho de Gong Yoo confere a “Em Silêncio” a carga precisa de emoção de que um trabalho dessa magnitude dramática necessita, nem tão seco, a ponto de escandalizar o público, nem, por outro lado, meloso, uma vez que o assunto é grave demais para experimentações comerciais ou mesmo narrativas. O personagem central ganha a ajuda de Seo Yoo-jin, a assistente social militante de causas humanitárias interpretada por Jung Yu-mi, ao lado de quem passa a travar uma luta inglória a fim de fazer com que os culpados paguem por suas atrocidades.

É uma lástima, mas também numa sociedade indiscutivelmente mais desenvolvida, como é a sul-coreana em comparação a muitas nações do Ocidente — entre as quais se inclui, em grande proporção, o Brasil —, também se dão expedientes pouco republicanos no universo judiciário e promotores e juízes pouco conscientes de seu papel constitucional e junto ao povo comprometem a devida condução do processo, e o que se vê é o descalabro que brasileiros conhecemos tão bem, mormente em casos dessa natureza. Vítimas e algozes trocam de lugar, e mesmo angariando repercussão popular maciça, em todo o mundo, os acusados receberam sanções irrisórias, saindo da cadeia menos de um ano depois de julgados, em 2005. A polêmica voltou à baila em 2011, depois da estreia de “Em Silêncio”, e se assistiu a uma verdadeira revolução. A onda de protestos que varreu o país implicou na reabertura das investigações e na interdição permanente de Gwangju Inhwa, além da promulgação da Lei Dogani, homenagem ao nome original do filme. A Dogani prevê maior prazo para a prescrição de crimes sexuais envolvendo crianças, sobretudo se deficientes, e aumentou as penas. Exemplo a ser copiado por qualquer lugar que se pretenda civilizado e uma prova da importância da mobilização social a fim de conquistar e manter os direitos de quem não pode falar por si.


Filme: Em Silêncio
Direção: Hwang Dong-hyuk
Ano:
2011
Gênero:
Drama
Nota:
9/10