Toni Morrison lista os 10 passos que levam um país ao fascismo Bernard Gotfryd / Library of Congress

Toni Morrison lista os 10 passos que levam um país ao fascismo

Tempos difíceis inspiram cuidados adicionais. Quando a política começa a apresentar-se em tons excessivamente apaixonados, fomentando todo gênero de conduta intolerante, segregacionista, odienta, inclusive por gente que detém algum poder de influenciar uma massa amorfa, gelatinosa, incapaz de formular um entendimento racional do mundo precisamente porque orientada por ignorantes, que se arvoram em âncoras de debates na internet e comentaristas políticos de rádios; em momentos como os que vivemos, em que a convivência com o diferente é francamente desestimulada e até condenada, costumam florescer padrões de comportamento e mesmo ideologias que têm de ser rechaçados, pelo bem da civilização.

Líderes carismáticos que se valiam de seus poderes encantatórios para iludir e aprisionar sua população numa espiral de atraso, miséria, obsolescência cultural e supressão das liberdades individuais continuam a ser uma das pragas inexpugnáveis da humanidade no século 21. Benito Mussolini (1883-1945) desenvolveu na Itália um sistema de ideias que, em nome do bem comum, alijavam do debate público indivíduos com os quais se pudesse ter qualquer sorte de discrepância de opinião.

Mussolini mostrava-se tão competente na tarefa de enredar cidadãos comuns, políticos e intelectuais na fantasia perigosa do pensamento único que em 1919 conseguiu fundar em Milão os Fasci Italiani di Combattimento, embrião do que veio a ser o Partido Nacional Fascista. Os fascistas tinham por pressuposto essencial calar o Parlamento, outorgar uma nova Constituição, de acordo com o que rezava o regime que começava a despontar, e controlar as unidades fabris e a indústria por meio de seus operários. Oportunista como poucos, quando, em 1920, uma sublevação de trabalhadores no norte da Itália foi duramente reprimida pelo governo local, o aspirante a déspota capitalizou o pavor da classe burguesa frente ao que parecia se constituir um levante comunista e ganhou ainda mais popularidade. Por meio de um processo eleitoral desabridamente fraudulento, os fascistas obtiveram maioria no Congresso. O deputado socialista Giacomo Matteotti (1885-1924) denunciou o golpe e foi morto. Um ano depois, estava oficialmente instalada a ditadura fascista de Mussolini, o Duce, fundador do império do medo na Itália.

Autora de “Canção de Salomão” (1977) e “A Nossa Casa é Onde está o Coração” (2012), a escritora americana Toni Morrison (1931-2019) deixou um legado importante, e não só na literatura. Em seu debute como romancista, “O Olho Mais Azul” (1970), um tratado sobre raça, gênero e estética, assuntos aos quais se dedicou com maior empenho no fim da vida, Morrison começava uma trajetória admirável na defesa do direito ao livre pensar, justamente tudo o que mundivisões e regramentos arbitrários como o fascismo abominam. No célebre discurso em comemoração ao 128° aniversário da Universidade Howard, em 2 de abril de 1995,  Morrison fez questão de exorcizar os velhos fantasmas que assombram a humanidade de há muito, como a tirania e a intransigência, e enalteceu a liberdade. Os escombros da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), dos quais a humanidade jamais poderá se livrar de todo — e é bom que assim o seja —, foram resgatados pela romancista em sua exposição; a “solução final”, uma excrescência retórica de Hitler para definir a eliminação do povo judeu, foi citada por ela, que lembrara que até que se desse o tal arremate decisivo para a questão — naquele caso, o extermínio dos judeus, extensível a qualquer indivíduo, de qualquer raça, que pense qualquer outra coisa que não o consensual —, era necessária uma sucessão de etapas, já que nada na história do homem acontece de uma vez. Dessa forma, Toni Morrison listou dez passos, uma escalada medonha que, ao que parece, muita gente está disposta a trilhar, visando recompensas que nunca serão pagas, negando-se, por fim, a aprender com o passado, que nunca se esconde. Ei-los:

1 — Construa um inimigo interno, do qual nunca poderá renunciar e com que poderá sempre se divertir;

2 — Isole-o e demonize-o, ofendendo-o com os xingamentos que ele entende — e com os que não entende também. Abuse dos ataques ad hominem, mormente os que desqualificam sua aparência, e faça deles acusações legítimas;

3 — Recrute e crie fontes e transmissores de informação dispostos a reforçar o processo demonizador, porque é lucrativo, porque confere poder e porque funciona;

4 — Cerceie todas as manifestações de arte; monitore, desacredite ou expulse quem ousa desafiar ou desestabilizar processos de demonização contra os eleitos como inimigos e de deificação, contra os pais do povo;

5 — Subverta e difame todos os representantes e simpatizantes desse inimigo diligentemente elaborado;

6 — Solicite, entre o inimigo, colaboradores que coonestem e possam dar aparência legal ao processo de desumanização;

7 — Faça com que o inimigo seja encarado, nos meios eruditos e populares, como portador de grave doença social; reabilite, por exemplo, o racismo científico e os mitos de superioridade racial para naturalizar essa patologia;

8 — Criminalize o inimigo. Para tanto, muna-se de orçamentos e torne viável a construção de arenas para enfrentá-lo — se conseguir detratar seus amigos e parentes, melhor ainda;

9 — Recompense a insensatez e a apatia geral com entretenimentos grandiosos e pequenos prazeres e seduções banais (alguns minutos na televisão, poucas linhas na imprensa, a ilusão do sucesso, do poder; faça-o parecer influente, deixe-o pensar que tem estilo. Engane-o, levando-o a crer que suas opiniões dispõem de alguma consequência);

10 — Mantenha o silêncio. A qualquer custo.

Toni Morrison disse essas palavras há quase 27 anos.