Em ‘Tudo é Rio’, Carla Madeira retoma o folhetim romântico

Em ‘Tudo é Rio’, Carla Madeira retoma o folhetim romântico

Na pandemia de Covid-19, os leitores e as leitoras parecem ter redescoberto a literatura brasileira. Dois fenômenos ocorreram por meio das redes sociais (o boca-a-boca digital) e impulsionaram as vendas de ficção a partir de 2020. O primeiro foi o êxito de “Torto Arado”, de Itamar Vieira Jr. O segundo revelou Carla Madeira com o romance “Tudo é Rio”, publicado em 2014 por uma pequena editora e reeditado pela Record. De formas distintas, ambos trazem histórias dramáticas e desfechos positivos em relação à vida.

O olhar negativo sobre o mundo e o país predominou na melhor ficção brasileira dos últimos anos — haja vista os romances de Ana Paula Maia e o impactante “Solução de Dois Estados”, de Michel Laub. Também forte é o realismo urbano de Fernando Bonassi e Patrícia Melo. Em contraposição a esse movimento que flerta com a distopia, livros como os de Itamar e Carla ofereceram a escrita da delicadeza, personagens femininas e histórias bem contadas. A aceitação por parte do público é impressionante.

“Torto Arado” trouxe a novidade da incorporação da ficção pós-colonial que tem enorme êxito no mercado internacional. Foi uma grande sacada do autor colocar questões de ancestralidade africana na trama que se passa nos confins da Bahia, tendo protagonismo de negros descendentes de quilombolas. Mas o que pode ter chamado a atenção de leitores e sobretudo leitoras para “Tudo é Rio”? Afinal, trata-se de mais uma história de amor, numa pequena cidade que parece estar no interior de Minas Gerais.

Tudo é Rio, de Carla Madeira (Record, 210 páginas)

A partir de uma leitura detida, no entanto, é possível ver os ecos da forma do folhetim romântico na escrita de Carla Madeira. Pode estar no estilo folhetinesco a chave para decifrar o enigma da autora. Em meio ao mundo contemporâneo caindo pelas tabelas, ela escreveu um romance que é uma narrativa alentadora e familiar para o leitor. A fórmula do folhetim está nos personagens em seus melodramas, sentimentalismos, pieguices, lágrimas, emoções baratas, suspenses e muitas reviravoltas da trama.

O fio narrativo de “Tudo é Rio” é a história da prostituta Lucy, que cria uma obsessão por Venâncio, o único homem da cidade a rejeitá-la. Ele, por sua vez, é casado com Dalva, com quem mantém uma relação distante e fria. Sua vida se resume a trabalhar e a visitar o prostíbulo da cidade. De saída, o leitor reconhece o ambiente e os personagens que fazem parte do imaginário popular, no último século do país. E sobretudo, o romance apela para as formas mais populares e consagradas de ficção.

Amor romântico

Há trechos de “Tudo é Rio” semelhantes aos do romantismo do século 19, na linha de um Joaquim Manuel de Macedo e seu clássico “A Moreninha”. Longas passagens descrevem, por exemplo, o namoro e o casamento de Dalva e Venâncio. “Os lábios dele tocaram de leve nos lábios dela, como o pouso de mil borboletas brancas. Tomaram uma distância miúda, quase invisível, e se encostaram de novo, um vai e vem sereno embalou os dois aumentando aos poucos a vontade de demorara ali”, descreve o narrador.

Carla Madeira utilizou o narrador clássico do século 19, aquele que conta tudo em terceira pessoa e se intromete na história o tempo todo. O fluxo da trama sofre interrupções constantes que oferecem sempre uma mensagem de sabedoria de vida ou retornos ao passado para explicar todos os pontos. “O sofrimento, por uma insanidade humana ou por uma perversidade divina, tem valor. Assim creem os que creem. Encontram no calvário um sentido para além da vida”, diz o narrador de Carla Madeira.

A escritora vai assim amarrando a história da prostituta Lucy com a do casal Venâncio e Dalva. E os recursos folhetinescos aparecem a todo momento. Segundo Marlyse Meyer, que estudou essa tradição na França e no Brasil, o folhetim tem sempre a heroína-vítima, as tramas da mãe que tem um filho criado por outra mulher, a criança roubada, a dupla casamento/adultério e o final da história que traz a recompensa para os bons e a punição para os maus. O leitor vai encontrar facilmente esses pontos em “Tudo é Rio”.

Carla Madeira utiliza tais soluções e, também, o recurso das reviravoltas. Quando a história está meio morna, surge uma revelação bombástica para esquentá-la. É o “plot-twist” das telenovelas ou séries de streaming, como “Revenge” e “Virgin River”. Em “Tudo é Rio”, leitores e leitoras levam sustos seguidos, por exemplo no momento que Lucy aparece grávida e descobre-se que o filho do casal Dalva e Venâncio não morreu. Essa virada de cabeça para baixo da narrativa é o “rocambole” no folhetim francês.

Saindo um pouco de fórmulas tradicionais, o livro usa mil tons de erotismo nas passagens com Lucy. São muitas cenas de sexo, na maior parte das vezes romantizadas. Constrói-se a prostituta por gosto e vontade própria, quase como se não houvesse a questão social e a história pessoal envolvidas na biografia dela. As descrições são igualmente derramadas e até cômicas na “Casa de Manu”, o nome do prostíbulo. E o narrador faz até um julgamento moral: “Parte da excitação de Lucy morava na perversão”.

Sujeitos perversos

Na ficção contemporânea, não existe lugar para um narrador que faça julgamentos dessa espécie, sobre a perversão – e que abundam em “Tudo é Rio”. Conclusões devem ficar sempre por conta do leitor, dizem os manuais atuais de escrita. Mas Carla Madeira optou por elaborar um narrador moralista e cenas abundantes de sexo – um tanto apelativas, diga-se de passagem.

Por outro lado, as contradições do narrador são interessantes para entender as personagens centrais Lucy e Dalva. É o aspecto que torna o romance mais problemático e o retira do esquematismo do folhetim.     

As situações e falas de Lucy mostram a mulher desbocada, louca e má (a perversa), em consonância com o imaginário em torno da sexualidade da prostituição. Em oposição a isso, Dalva aparece na figura da senhora recatada e “anjo do lar” (para usar a clássica personagem do romantismo inglês). O narrador conduz a narrativa de forma a convencer o leitor da existência dessas representações fixas. Apenas no final, o romance dá uma reviravolta (mais um rocambole) que permite uma outra leitura, bem mais interessante.

No clímax, Dalva revela a Venâncio que está vivo o filho do casal, antes dado como morto. O marido carregou por anos a culpa e a responsabilidade pela morte da criança, o que o faz sofrer absurdamente. O livro ganha novo sentido ao expor a estratégia de Dalva: ela não contou a verdade para ele não sofrer ainda mais. Seria um ato de piedade dela, diz o narrador. A esposa tem o clássico gozo do perverso ao ver o marido se martirizando ao longo de anos. Em outras palavras, o maior perverso da história é Dalva — e não Lucy.

Quem tem familiaridade com os romances de Machados de Assis, percebe que o desfecho de “Tudo é Rio” tira a personagem Dalva do folhetim e a coloca entre as figuras perversas da classe dominante. É a maldade da vingança de Bentinho contra Capitu (“Dom Casmurro”) ou de Paulo Honório contra Madalena (“São Bernardo”, de Graciliano Ramos). Nos momentos frágeis, o romance de Carla Madeira se ancora no romantismo do século 19. Ganha força ao expor Dalva como a personagem altamente problemática.

Nas linhas finais do livro, a menção a Deus pode ser lida como ironia. “Dalva e Venâncio poderiam sentir o gosto e o gozo um do outro. O caminho alagado trazia a promessa de corpos úmidos. Deus estava de volta”, diz o narrador. Em outras palavras, o casal aprontou mil confusões e sente a paz de Deus no final. Se for uma ironia da autora e do narrador, o livro ganha densidade e ambiguidade necessárias à boa ficção contemporânea. Caso seja uma crença, estamos diante do surrado e conservador folhetim romântico.