A arte brasileira é tão boa quanto a de qualquer outro país Encontro (1924), de Lasar Segall

A arte brasileira é tão boa quanto a de qualquer outro país

Mas afinal: a arte de alguns países é melhor do que a arte de outros? O que parece ser uma pergunta tola pode revelar muito sobre a maneira com que os mecanismos ideológicos do circuito cultural funcionam, e para tais circuitos a resposta implícita em seu modus operandi é “sim”. Sabemos de antemão que, como em outros casos, pretende-se que haja uma arte de centro e uma arte de periferia. O centro se constituiria de Europa e Estados Unidos, nos termos de uma “história” e uma crítica de arte produzida por europeus e norte-americanos.
Sintoma desta pretensão seria o livro “Arte Moderna” (Companhia das Letras, 1993), de Giulio Carlo Argan, no qual o crítico italiano não faz nenhuma menção a Oscar Niemeyer, muito embora o autor demonstre pela arquitetura o mesmo interesse que tem pelas artes visuais. Além de exercer a crítica Argan reconstitui a história deste período da arte, elencando inclusive dois brasileiros: Almir Mavignier, com direito a foto em preto e branco de um de seus trabalhos, e Cândido Portinari, cujo nome é citado uma vez. A omissão de Niemeyer parece ser deliberada e particularmente inexplicável. Brasília é a única cidade modernista que saiu do papel, em todo mundo; única experiência urbanística exitosa segundo as diretrizes da “Carta de Atenas” (1933), o que implica também Lúcio Costa. O exemplo de Argan sugere um certo desprestígio da produção artística brasileira, levando-nos a questionar seu status internacional.

O fato de o Brasil por muito tempo sediar uma das maiores exposições de arte do mundo (Bienal de São Paulo, ao lado das bienais de Veneza, Paris e Documenta de Kassel, na Alemanha) falseia a verdade. Isto porque, segundo levantamentos estatísticos feitos por Frederico Morais em “Artes Plásticas na América Latina, do Transe ao Transitório”, a Bienal de São Paulo tem uma função ideológica de “posto avançado de colonização cultural, em conluio com as multinacionais do mercado”. Nos termos de Morais o objetivo é institucionalizar uma relação de dependência entre as produções nacionais e internacionais. O possível silêncio a nosso respeito no circuito internacional seria explicado por essa relação de hegemonia, estabelecida por uma “divisão internacional do trabalho”, no plano cultural. A análise de Morais é dos anos 1970, mas é bastante provável que a lógica daquela época se aplique à pós-modernidade e à atualíssima feira de arte de Basel, na Suíça, posto avançado da produção atual.

O fato, porém, é que essa colonização tem bastante sentido matemático mas nenhum sentido cultural, já que somos também de origem portuguesa. Isto é, podemos reivindicar a herança europeia. Parece, assim, que mais interessante para a compreensão de nosso status de retaguarda é compreender que a condição periférica depende de outras vicissitudes, inaplicáveis a europeus e, até meados do século 20, a norte-americanos: 1) ao fato histórico e mais abrangente de que nunca nos constituímos em potência econômica mundial; 2), ao fato estético de que não criamos nenhum estilo, ao passo que apenas os absorvemos para consumo próprio, e 3) ao fato cronológico de que tais influências chegaram até nós com atraso significativo (na era atual, de comunicação em tempo real, a tecnologia desfaz esse obstáculo). Exemplos dessa defasagem: o modernismo chegou no Brasil em 1922, depois de mais de uma década em plena efervescência na Europa, e só superamos oficialmente a arte figurativa em 1952, muito embora a arte abstrata (“concreta”, segundo Kandisnky) já fosse uma realidade entre os europeus desde pelo menos 1911. Nos dois casos somente a transformação da produção social, traduzida em urbanização e industrialização, permitiu o salto que a simples existência de novos estilos na Europa não facultava. Como observa Malevich, a característica industrial ou provinciana da arte deriva do meio em que a criação se realiza (cf: Introdução à Teoria do Elemento Adicional à Pintura).

Tais circunstâncias (histórica, estética e cronológica) reforçam a ideia de que somos simples “colonizados” no contexto internacional. Seríamos então a retaguarda das vanguardas, segundo a lógica de Frederico Morais, e imitar constituiria nossa vocação, da mesma forma com que em matéria de Filosofia seríamos comentaristas. É mais complexo do que isto porque, sendo o comércio de ideias uma prática comum entre os países do Velho Mundo, independente de matrizes étnicas (saxões, eslavas, nórdicas ou latinas), não há porque acreditar que a simples mudança de europeus para outro continente deveria alterar esse fato orgânico essencial, da cultura. Em outras palavras, adotar os estilos em uso na Europa é legítimo para os artistas americanos, e até inevitável por razões genéticas, tornando a ideia de “imitação” ou “colonização” um preconceito de críticos, curadores, marchands e tutti quanti. Talvez esta seja, aliás, a menos grave daquelas três circunstâncias fundamentais, sem contar que nunca foi (nem poderia ser) simples transposição o que houve no Brasil, que agregou os temas nacionais aos novos estilos.
Di Cavalcanti é um excelente exemplo e, por razões diversas, Lasar Segall: de origem lituana, Segall conciliou o expressionismo alemão de Dresden com a paisagem natural e humana do país de sua adoção. Não obstante, qual teria sido o lugar reservado a Segall na arte moderna se, em vez do Brasil, tivesse migrado para os Estados Unidos, como fizeram Arshile Gorky ou Mark Rotko? Não sabemos, mas é instigante pensar nisso. Seja como for, a obra de Di Cavalcanti e Lasar Segall não poderia ser apenas arte europeia, ainda que o tema não tenha jamais a importância de um estilo, tornando-se inclusive dispensável com o advento da arte concreta. E de fato a arte brasileira não criou um estilo, algo que os norte-americanos conseguiram fazer a partir de sua ascensão econômica.

Em que pese a originalidade a civilização europeia conseguiu constituir um sistema milenar, uma tradição que se mantém desde os gregos. A história da arte descreve esse desenvolvimento por etapas no Ocidente, começando no século oitavo a.C. até os nossos dias. São raros os casos universais — e individuais — que não se encaixam perfeitamente em algum ponto desta tradição milenar (de certo modo William Blake é uma das exceções, assim como Henri Rousseau). A “ruptura” com essa tradição só é possível quando emerge uma nova potência mundial, como os Estados Unidos após a Segunda Guerra (condição histórica). Por isso mesmo é que em meados do século passado Nova York desbancou Paris como centro artístico internacional e os norte-americanos conseguiram criar um estilo próprio (condição estética) que lhes permitiu assumir a vanguarda (condição cronológica), superando no mesmo movimento conjuntural aquelas três vicissitudes dos povos americanos. Foi desta forma que deram origem ao expressionismo abstrato e, em parte, à pop art. Ainda assim, toda a tradição ocidental perpassa a arte norte-americana mais original possível, tanto quanto perpassa qualquer arte considerada “periférica”, incluindo a brasileira.

Segundo Giulio Carlo Argan a técnica do mais original artista dos Estados Unidos, Jackson Pollock, “deve muito ao automatismo surrealista, à vitalidade intrínseca e autônoma que Gorky concede ao signo”. O próprio Pollock é taxativo, a respeito do assunto: “A ideia de uma pintura americana isolada, tão popular nos Estados Unidos na década de 30, parece-me absurda, como absurda seria a ideia de criar uma matemática ou uma física puramente americana… E, num outro sentido, o problema não existe; ou, se existisse, se resolveria por si mesmo. Um americano é um americano e sua pintura se qualificaria naturalmente a partir desse fato, quer ele o deseje, quer não. Mas os problemas básicos da pintura contemporânea são independentes de qualquer país.” (Cf: Três Declarações, 1944-1951) Pollock deixa implícito que a hegemonia artística norte-americana (como a europeia, em contato com o Oriente e a África), não decorre de qualquer originalidade absoluta. Por que razão seria diferente com latino-americanos?

A qualidade jamais está em questão: nenhuma daquelas três circunstâncias, que ainda afetam a produção latina, tornam os periféricos econômicos piores artistas, embora indiscutivelmente determine seu status internacional: devido ao seu atraso histórico, seria muito difícil, por exemplo, que a arte brasileira influenciasse a de um país hegemônico. Ela sempre se manifestou depois. Excluindo tais circunstâncias, somente a presunção pode ignorar que em nosso meio há artistas de primeira grandeza. Desta vez porque a humanidade é a mesma em toda parte, independente das ficções ideológicas (crítica, bienais, seminários…), e o monopólio do gênio é uma ideia tão impossível quanto a de um ovo quadrado.