‘Não Olhe para Cima’ retoma a questão filosófica da espera

‘Não Olhe para Cima’ retoma a questão filosófica da espera

O anúncio de um cometa a caminho do planeta Terra é o estopim do filme “Não Olhe para Cima”, lançado pela Netflix na virada de 2021 para 2022. De novo, mais uma narrativa (cinema, literatura) coloca o tema da espera no centro da trama. Protagonistas-cientistas lutam para convencer a humanidade de que começara uma conta regressiva para o fim do mundo. Mas, ao invés de tomada de consciência, as pessoas na tela buscam a obtenção do último lucro, o ganho derradeiro antes da catástrofe.

A forma do filme é uma sátira, com personagens exagerados, situações absurdas e, o que é novo, o instinto destruidor das redes sociais. Parece que o diretor Adam McKay escolheu a única maneira que o público poderia entender a sua mensagem. Algumas cenas isoladas são hilariantes, como a do super general do Exército dos Estados Unidos que aplica pequenos golpes nos visitantes da Casa Branca. Na iminência do fim dos tempos, ele cobra alguns dólares por lanches gratuitos na sede do governo.

“Porque ele [o general] está fazendo isso?”, indaga repetidamente a perplexa cientista feita pela atriz Jennifer Lawrence. Ela pensando no cometa que vai extinguir a vida humana, e o militar praticando trambique. A máquina do poder em “Não Olhe para Cima” é uma engenhoca de ilusionismo e enrolação. Trata-se de um retrato agudo de como funcionam as cortes e os palácios governamentais. Desqualificados dão as cartas, e puxa-sacos têm sempre a solução mágica para um presidente ou primeiro-ministro em apuros.

A mídia é uma central na fábrica de ilusões e distração. O programa de televisão onde os cientistas revelam a história do cometa tem o nome de Daily RIP. A sigla RIP significa “Rest in peace”, a mensagem de “descanse em paz” dita aos mortos e que é inscrita em lápides nos cemitérios. O telejornal do filme seria então o diário dos pêsames, no qual os âncoras tentam tirar piadas espirituosas de catástrofes a todo momento. São anedotas corrosivas e sérias que apenas as sátiras conseguem fazer.    

Num giro sério, o filme tem o desfecho com cena bíblica. Os personagens-cientistas feitos por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence organizam uma última ceia. Dá-se a pausa no pastelão macabro. Eles sabem que não haverá salvação e preferem desfrutar os instantes finais na hospitalidade de um jantar entre amigos e parentes. Como no filme “Melancolia” (2011), de Lars Von Trier, o objeto sideral se choca com o planeta e o destrói. Ninguém teve paciência de pensar o significado da colisão.

É mais fácil imaginar hoje o fim do mundo do que o fim do capitalismo, disse anos atrás o pensador inglês Mark Fisher. Ele mesmo preferiu abreviar sua vida, em janeiro de 2017, do que esperar o que estava por vir. “Houve um tempo em que filmes e romances distópicos eram exercícios semelhantes ao ato de imaginação — os desastres que descreviam serviam de pretexto para a emergência de diferentes formas de vida”, notou Fisher, em seu hoje clássico livro “Realismo Capitalista”.

Presente eterno

Filmes como “Não Olhe para Cima” tratam da iminência da catástrofe que, na vida prática, é a destruição. Ao contrário de que sugeriu Fisher, a história de Adam McKay não explora a imaginação de diferentes formas de vida. O que aparece na tela, é a radicalização do que já existe no mundo. Não há futuro diferente a ser elaborado, apenas temos o presente eterno. Só os restos desse presente prevalecem, incluindo a decisão dos personagens de aproveitar os trilhões de dólares em minérios do cometa. 

Mas o filme poderia ser outra coisa. A cometa seria, por exemplo, a oportunidade não para ganhar dinheiro e sim um motivo para mudar os rumos das coisas. No teatro grego, o evento catastrófico significava a reviravolta da trama — ou o plot twist dos seriados de hoje no streaming. Deveríamos pensar mais em viravoltas históricas e compreender as formas metafóricas de um cometa. Onde está a imaginação para pensar alternativas? Esse é o conceito de ficção dos gregos: pensar o que poderia ser diferente.

Vendo a contagem regressiva de “Não Olhe para Cima”, lembrei ainda de que todo mês de janeiro ocorre a divulgação anual do Relógio do Juízo Final. Foi uma brincadeira séria lançada pela Universidade de Chicago em 1947, por meio da publicação do Boletim dos Cientistas Atômicos. Depois da 2ª Guerra Mundial, um grupo de estudiosos calculou que o mundo estava a sete minutos da meia-noite (a hora fictícia marcada para o apocalipse nuclear). Em 2021, a contagem chegou a 1 minuto e 40 segundos para o fim.

Em “Não Olhe para Cima”, a cientista feita por Jennifer Lawrence faz sua contagem para o fim do mundo por meio de um prosaico aplicativo de celular, usado para dietas. No filme, a engenhoca digital para medir o emagrecimento vira o Relógio do Juízo Final. Engordar seria uma angústia tão grande quanto saber da iminência de que o mundo vai acabar. E ficar de olho no celular tornou-se algo obsessivo e, como bem mostrou o filme, uma prática de sofrimento — simbolizado no fluxo de memes das redes sociais.   

Segundo psicanalistas, os seres humanos têm uma relação tensa com a questão da espera. Pessoas depressivas podem aguardar horas ou dias por um evento, porém não suportam a ansiedade do próximo minuto. Ao analisar o comportamento de consumidores, Jason Farman conta uma história interessante: cinco minutos é o tempo máximo que as pessoas conseguem esperar por uma resposta numa conversa em telefones celulares. Não vivemos um tempo em que a paciência seja uma forma de viver a vida.

Talvez tenhamos perdido a habilidade de esperar, ainda mais com as redes sociais em ritmo alucinante. Principalmente de esperar um futuro melhor. Ficou para trás o diálogo entre os personagens Galileu Galilei e Andrea Sarti, na peça de Bertolt Brecht: “Agora nós vamos sair para fora, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo antigo acabou, e agora é um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está esperando alguma coisa”. A ideia era a espera do futuro que viria, certamente melhor que o passado.

Pode ser infelizmente que a espera de hoje seja mais parecida com a das peças de Samuel Beckett: humanos trancados num quarto, sem saber o que está por vir, talvez aguardando o fim. O escritor irlandês pensou justamente o tempo que se aproximava da “meia-noite” do mundo, tal qual os cientistas atômicos. Um cenário próximo de um apocalipse, como o vírus que assustou e trancou todos em casa a partir de 2020. A vida parou de fato, mas pode ser que chegou a hora de voltar a imaginar um amanhã melhor que hoje e ontem.