A arte segundo comunistas e fascistas

A arte segundo comunistas e fascistas

O comunista Vladimir Kemenov, o nazista Adolf Hitler e um deputado norte-americano (este em 1949) acusaram publicamente a arte moderna de ser “degenerada”. Segundo Kemenov aquela profusão de ismos — cubismo, surrealismo, dadaísmo, futurismo… — servia à “burguesia decadente”; segundo George A. Dondero ela servia “aos comunistas”, e segundo o Führer essa mesma arte servia a “judeus e bolcheviques”, ao mesmo tempo em que era produto da orfandade étnica (óbvio, Hitler não acusa a burguesia de nada). Tais conveniências provam quão grande é a confusão que os políticos, até os democráticos, podem fazer ao imiscuírem num terreno que desconhecem — ou, antes, que a ideologia de cada um obscurece. No caso em análise, a História mostrou que a situação é bem mais complexa do que as facilidades que a retórica política cria para fins demagógicos.

Mas há mais diferenças marcantes entre comunistas e nazistas: o discurso destes é de conteúdo racial, enquanto o daqueles é classista. Enquanto os nazistas falam em “guerra de purificação” contra as esquisitices da arte contemporânea, os comunistas reclamam que essa esquisitice é “anti-humanista”. Ambos, contudo, são nacionalistas, visto que o stalinismo derrotou o universalismo trotskista. Em verdade o conteúdo político interessa muito pouco aqui, onde procuro identificar as concepções artísticas que esses lados defendiam. Em “Teorias da Arte Moderna”, Herschel B. Chipp fornece o panorama geral.

Leon Trótski publicou em 1923 um texto recheado de contradições chamado “Literatura e Revolução”. Numa parte ele diz que “Ninguém vai recomendar temas a um poeta”, exortando que, “Por favor, escrevam sobre qualquer coisa que queiram!”. Dois parágrafos a seguir o tom é de ameaça: “Nosso padrão é claramente político, imperativo, intolerante”. A explosão de estilos modernos corresponderia à fragmentação da psique burguesa, ao passo que os bolcheviques desejam restabelecer a unidade da psicologia social, que o formalismo reinante contraria com sua diversidade de formas caóticas. Como fiéis marxistas, os bolcheviques consideram que a arte possui uma finalidade social. Logo, o utilitarismo é a base: a torre Eiffel jamais existiria em um mundo comunista porque, a priori, a Torre Eiffel não serve a um propósito prático (imaginamos a França sem a inútil Torre Eiffel!…). A arte deve ser didática e educar as massas, exatamente, aliás, como dela se apropriou a Igreja, desde a Idade Média até a contrarreforma. Conclusão lógica, o único estilo que servia aos comunistas era o realismo: “a vida tal como ela é”, nas “três dimensões”.

Vladimir Kemenov, que foi historiador da arte e dirigente de uma importante organização russa de relações culturais com o estrangeiro, a VOKS, adota a mesma linha de raciocínio de Trótski em “Aspectos de Duas Culturas” (1947). Para Kemenov o modernismo era “reacionário”, “caótico”, “indiferente para com o homem”, “mentiroso”, “patológico”; enfim… “degenerado” (este o adjetivo consagrado por Adolf Hitler, embora quase todas as demais acusações do dirigente comunista coubessem na boca do nazista). Alvo de ataques tanto quanto Paul Cézanne, Pablo Picasso é considerado um “apologista do capitalismo”. Em franca oposição a tudo isto a revolução propunha imitar o real, “a única trilha verdadeira em arte”, “socialista em seu conteúdo e nacional na sua forma: uma arte digna da grande época de Stálin”. Repetindo Trótski literalmente, Kemenov anuncia o estilo que reflete “a vida tal como ela é”. De filiação iluminista, como bem lembrou Norman MacKenzie (cf: “Breve História do Socialismo”, Zahar Editores), o socialismo reprova tudo o que é irracional.

Adolf Hitler pensa o contrário. Pintor medíocre na juventude, o estilo que aprova é o romântismo à maneira de pintores do século 18, em especial Philipp Otto Runge e Caspar David Friedrich. É revelador: a poética dos sonhos nazista é inspirada na arte mórbida e misteriosa do Sturm und Drang. Isso torna bastante icônica a imagem do Führer em sua residência nas montanhas de Berchtesgaden: em seu refúgio na natureza ele parecia ser a própria encarnação do “Wanderer über dem Nebelmeer”: o “Caminhante sobre o mar de névoa”, idealização deste espírito ultra-romântico. Já foi dito que a pintura de Friedrich projetava estados de ânimo, em vez de refletir a natureza, à maneira dos pintores ingleses da mesma época. Todos sabem, o romantismo tem raízes fincadas na Idade Média, portanto é contaminado por um forte componente religioso e evasionista e, claro, muita melancolia, o que parece combinar com a personalidade sabidamente solitária do próprio Hitler. Não que falte ao romantismo o principal: a filiação, haja vista que os grandes teóricos do movimento eram alemães, entre os quais os irmãos Schlegel. Mas os nazistas aprovavam também o estilo neoclássico, linguagem de toda a arquitetura oficial do III Reich, projetada por Albert Speer. (Neoclássica era também a arte de outro regime autoritário, no passado: a França de Luiz XIV.) Por fim, toleravam o expressionismo à maneira da escola de Dresden, não por acaso o estilo de arte contemporânea mais visceralmente alemão, e que também fazia pontes com a tradição artística medieval (técnica da xilogravura).

A bem da verdade, comunistas e fascistas estavam num beco sem saída. Incapazes por si mesmos de criar algo novo em matéria de estilo, não é que os bolcheviques, por exemplo, fossem contra tudo o que era produto do sistema. O desavisado Kemenov revela a nostalgia dos líderes soviéticos “pelas melhores tradições do realismo burguês dos séculos 18 e 20” que, se quisermos, podemos acusar de ser expressão do capitalismo pré-industrial. Teríamos de saber quais eram as figuras referenciais para o dirigente, sendo possível supor, pela época aludida, que pensava provavelmente em Velázquez, na Espanha, ou em Jean-François Millet, Honoré Daumier e Gustave Courbet, na França.

O fato é que a predileção de comunistas e nazistas por tais estilos do passado, em pleno século 20, tem a ver com o populismo, traço comum das duas ideologias. A categoria “povo” é essencial à visão totalitária, ainda que com os significados distintos de “raça” e de “classe”. Seja como for, o tema, rejeitado por boa parte dos modernistas, prevalece sobre a pesquisa formal e pode ser apenas um: o “povo” e suas derivações idealizadas: a revolução, o trabalho, o heroísmo, a família, o patriotismo. Nada de arte pela arte, o que seria explicado pelo fato de a massa não ter instrução e requerer formas acadêmicas e didáticas. (O muralismo mexicano é instrutivo, neste caso.) De acordo com Hitler a arte alemã, em nada diferente da soviética neste aspecto, deveria ser compreensível e abdicar das “instruções de uso” dos críticos, essa mistura de “loquacidade e engodo”. Coerente com sua visão racista, fala em “deformação visual”, “terrível defeito do olho”, “falha mecânica ou herdada”, ou seja, em problemas orgânicos, para explicar as características da arte contemporânea, cujos criadores interessariam ao Ministério do Interior do Reich e deveriam ser enquadrados pela jurisdição penal. São as ameaças que profere ao inaugurar a Grande Exposição de arte alemã, em Munique, em 1937. De fato, até o fim do regime a SS destruiu nada menos do que 20 mil obras de arte modernas.

Ao contrário do comunismo o III Reich durou pouco mais de dez anos (de 1933 a 1945). Em termos culturais mal saiu do papel, impedindo que conhecêssemos seus desdobramentos, exceto o fogo. Já os desdobramentos do realismo socialista são bem conhecidos e pode-se sentenciar: fracassou completamente. Porque tornou-se uma mistura insossa entre a glorificação das massas com um forte componente neoclássico: o culto da personalidade, das cortes absolutistas da Europa. Apesar de Trótski e Kemenov terem simpatias pelo realismo francês, Stálin parece que gostava mais de David e de Van Dick, respectivamente os retratistas de Napoleão e Carlos I, da Inglaterra. A verdadeira degeneração da arte foi obra do stalinismo, que a transformou em propaganda deliberada para fins nada humanistas. Em absoluta contradição com seus pressupostos, a arte incumbida de representar o mundo radicalmente novo foi o oposto da ação criadora, caracterizando-se por uma estéril imobilidade.

Tróski mudaria de ideia sobre os acontecimentos na União soviética, mas muito tarde e por razões políticas. Diferente é o conteúdo que defendeu em “Manifesto: por uma arte revolucionária livre”, escrito em parceria com André Breton, quando já era um exilado do regime stalinista. Naquele primeiro texto, de 1923, vibra toda a autoconfiança e desdém do ex-comandante do exército vermelho, ainda um personagem central do novo regime. Já no texto de 1938 é possível visualizar o mesmo homem em completa vulnerabilidade e radicalmente convicto do que antes condenara. A ponto de subscrever que a literatura é “um fim em si mesmo” e que “No mundo da criação artística, a imaginação deve escapar a todas as restrições e não deve, sob nenhum pretexto, deixa-se colocar sob amarras”. Além disso, qualifica o regime soviético de “totalitário” e “obscurantista” … Foi preciso Trótski se tornar ele próprio vítima do comunismo para, num inédito arroubo de empatia, desmontar suas crenças anteriores em defesa da total liberdade da arte. Posicionara-se agora a favor do que antes chamara de “misticismo” e “ecletismo”: tudo aquilo que, como Hitler, condenara e ameaçara. Em 1940 o regime de Stálin matou Trótski com golpes de picareta, na Cidade do México.

Adorar regimes e cultuar personalidades nunca foi tarefa de uma arte não apenas livre, mas a favor da liberdade. Esta é a única bandeira em que deve militar, se quiser permanecer viva.