A série mais doentia e perturbadora da Netflix em 2021

A série mais doentia e perturbadora da Netflix em 2021

“Vingança Sabor Cereja” sabe como fundir a cuca do espectador. Desconstruindo os modelos pasteurizados em voga em Hollywood desde sempre, a minissérie de terror de Nick Antosca, Todd Grimson, Lenore Zion e equipe decerto é a grande novidade do gênero na produção audiovisual de todo o mundo. Contando com desempenhos cênicos impecáveis, especialmente o da atriz Rosa Salazar, “Vingança Sabor Cereja” — cuja estreia se deu em 2021, em meio a milhares de excelentes lançamentos (e outros nem tanto), no cinema e em plataformas de streaming —, entretanto, também dá suas mancadas. Nada que invalide ou mesmo macule o sucesso desse trabalho, envolvente, perturbador e, sobretudo, ousado.

As cabeças por trás de “Vingança Sabor Cereja” conhecem muito bem as nuvens por onde estão passando. Antosca e Zion foram os responsáveis por um dos programas menos assistidos dos anos 2010, “Canal Zero” (2016), e com a empreitada de 2021 tiveram sua merecida forra. Baseado no romance homônimo de Todd Grimson, intitulado dessa forma sabe Deus por quê, “Vingança Sabor Cereja” narra a história de Lisa Nova, vivida por Salazar, cineasta em início de carreira que chega a Los Angeles com muitos sonhos na bagagem. Todavia, antes que pudesse ter qualquer ilusão quanto a isso, ela sofre a ofensiva de Lou Burke, interpretado por Eric Lange, alguém capaz de inseri-la no jet set dos artistas mainstream, mas que logo revela suas verdadeiras (e perversas) intenções. Tomada por um desejo de revanche que a consome, a protagonista encontra uma possiblidade de materializá-lo na figura da feiticeira Boro, personagem de Catherine Keener, e então a trama começa a se movimentar de fato. Ileso depois daquela catástrofe chamada “Nove Desconhecidos” (2021), de David E. Kelley e John Henry Butterworth, Manny Jacinto é mais um nome a colaborar para o êxito da produção, bem como Patrick Fischler, quando o enredo torna-se despudoradamente lynchiano ao apostar e privilegiar a mistura do real com o fantasiado, do que se sabe com o que somente se imagina, compondo um todo que soa como um thriller de horror dos anos 1920, e dispondo de tecnologia de ponta para que Antosca, Grimson e Zion levem a termo suas excelsas doidices.

“Vingança Sabor Cereja” não conhece limites. Desde eventos fisiológicos bizarros envolvendo Lisa à entrada em cena dos manjadíssimos zumbis, passando pela volta à história de personagens que se criam mortos e enterrados, a minissérie adquire os tons de surrealismo e realismo mágico que a tornam sofisticada, mesmo resvalando aqui e acolá em chavões típicos desses trabalhos, ao passo que a performance invulgar de Salazar sobressai, assumindo as cores de uma anti-heroína carismática, que como uma Joana D’Arc, faz das causas em que acredita sua própria razão de viver. O talento de Catherine Keener a capacita a incorporar o enigmático na trama, justamente por tirar a narrativa do elementar, do previsto, do tedioso. No princípio da temporada, Boro está ainda mais indecifrável, e deixa-se conhecer, organicamente, à medida que a história se adianta. Erros pontuais de direção fazem o eixo se deslocar um tanto, mas a química de Salazar e Keener, numa parceira muito feliz, empurram o roteiro aos trilhos outra vez. Duas intérpretes separadas por uma geração, cada uma é dotada de qualidades fundamentais para a execução perfeita do ofício com que ganham a vida. Ao mesmo tempo que a protagonista transmite credibilidade ao encarnar a natureza sobrenatural de Lisa, sem carregar nas tintas melodramáticas, a bruxa de Catherine Keener responde aos estímulos da colega no timing preciso, ambas se apossando da parte que lhes cabe, sem autoconcessões, tampouco sem esperar que o público as perdoe de alguma desmesura para com a coerência. Salazar mantém o fogaréu de “Vingança Sabor Cereja” sob controle, e quando a coisa parece serenada demais, Keener dá o ar da graça. É esse o modus operandi aqui.

Boa parte dos episódios do primeiro segmento — oito, com duração média de aproximadamente 45 minutos —, mira os embates entre Lisa e Lou, mas a partir do quinto, “Jennifer”, o devaneio cresce e “Vingança Sabor Cereja” segue assim até o desfecho, indo e voltando no tempo a fim de resgatar a história de Boro, aproveitando para elaborar conjecturas acerca da função do personagem de Lange no enredo. Los Angeles é uma cidade nascida do sonho dourado de um mundo melhor, patrocinado pelo cinema, mas conforme a narrativa é destrinchada, fica claro que alguma coisa fez a receita desandar. Antosca, Grimson e Zion captam essa demanda, de falar de gente deslocada num mundo pleno de excelência artística, mas igualmente eivado de futilidade, destempero, vileza. Tudo isso amarrado numa história nada melancólica, pensada para divertir antes de qualquer outra coisa.

Certamente o espectador não se alinha a “Vingança Sabor Cereja” incondicionalmente, surgindo, conforme se avultam as tão comuns relações de amor e ódio entre um público e seu programa favorito, as tantas críticas, relevantes ou só para destilar bile mesmo. Fato é que nada floresce em Hollywood sem uma dose brutal de empenho, sublimação dos impedimentos iniciais, sacrifício, e o trabalho de Nick Antosca, Todd Grimson e Lenore Zion não deixam a emoção cair e corroboram a voz rouca das ruas. A vingança é um prato que se come frio.


Série: Vingança Sabor Cereja
Direção: Nick Antosca, Todd Grimson e Lenore Zion
Ano: 2021
Gênero: Terror
Nota: 9/10