Povos da Amazônia inspiram novo pensamento filosófico

Povos da Amazônia inspiram novo pensamento filosófico

O aquecimento global, as mudanças climáticas, deixaram de ser assunto exclusivo de ambientalistas. Há um novo pensamento filosófico e mesmo literário sendo construído a partir da experiência indígena na Amazônia. Um dos maiores pensadores da atualidade é o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, com suas ideias de “perspectivismo ameríndio”. Ao mesmo tempo, os escritores Ailton Krenak e Davi Kopenawa se tornaram vozes extremamente relevantes do debate brasileiro e, também, global.

Um acontecimento que também chamou a atenção do público foi a candidatura recente de Daniel Munduruku para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. No mesmo movimento, a escritora e jornalista Eliane Brum mergulhou na vida indígena e publicou, neste ano, o livro “Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo”. Trata-se de uma das obras mais impressionantes sobre a floresta amazônica e seus povos autóctones. Se os brancos querem ver o seu futuro, devem olhar para os índios.

Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 448 páginas)

Esse pensamento inspirado nos indígenas revela a crise do chamado Antropoceno — o foco maior das críticas. O termo parece complicado à primeira vista, mas se refere à Era dos Humanos no planeta Terra. A fase em que os homens passaram a explorar intensamente a natureza para sobreviver. Segundo os cientistas e pensadores do tema, o Antropoceno levou à situação extrema de hoje com os efeitos das mudanças climáticas e o risco concreto de inviabilidade da vida humana e animal.

Os livros de Krenak são a melhor porta de entrada para a discussão do Antropoceno e do “perspectivismo ameríndio” — este último talvez seja hoje a teoria mais influente nas ciências humanas no Brasil, citado por autores tão díspares como Eduardo Giannetti e Christian Dunker. Os títulos já dão a mensagem: “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, “A Vida não é Útil” e “O Amanhã não Está à Venda”. Segundo Krenak, a ideia nobre de desenvolvimento sustentável é apenas a forma de gestão para evitar o fim do mundo.

Krenak diz que os problemas do mundo se devem à insistência humana de “comer a Terra” (a extração desenfreada de recursos naturais), ao “povo da mercadoria” (consumo nas metrópoles) e ao “comer dinheiro” (a fixação com acumulação monetária). Com a pandemia, veio a reação contra o “povo da mercadoria”: “O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise”.

Banzeiro amazônico

Neste ano, Eliane Brum apresentou sua versão da crise do Antropoceno com informações, memórias e relatos do que se passa na distópica Amazônia de hoje. Em 2017, ela se mudou em definitivo para Altamira (PA), o epicentro da catástrofe ambiental simbolizada pela hidrelétrica de Belo Monte. A escrita de Brum é uma das mais altas contribuições já dadas sobre a temática ambiental e do choque que uma pessoa do “povo da mercadoria” tem ao entrar na floresta. As mutações atingem o corpo da autora.

A Queda do Céu — Palavras de um Xamã Yanomami (Companhia das Letras, 768 páginas)

“Meu sangue virou água, e às vezes sinto um peixe fazendo cócegas no meu pâncreas. Outras vezes, toda eu sou envenenada pelo mercúrio que os garimpeiros jogam nas veias dos rios e nas suas próprias. Me contorço, viro mutante e ganho guelras podres”, diz Eliane Brum, que conhece bem o caos da floresta: “A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. A Amazônia salta para dentro da gente como um bote de sucuri”.

O banzeiro de Eliane Brum é a visão de um branco para a situação amazônica descrita e interpretada na obra monumental de Davi Kopenawa, “A Queda do Céu — Palavras de um Xamã Yanomami”.  O livro foi escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert e virou a base para o novo pensamento inspirado na vida indígena. Nada ilumina mais o caso de uma pandemia, como a de Covid-19 a partir de 2020, do que a imagem de um céu despencando na cabeça de todo o “povo da mercadoria”.

O livro de Kopenawa tem virado a cabeça de muita gente. Seria a perspectiva indígena da Amazônia a solução para as mudanças climáticas? Pode ser a resposta direta de uma nova visão de mundo ou cosmologia que vai muito além da chamada cultura ocidental. É fato que a centralidade de vida humana levou ao esgotamento do planeta, em movimento radicalmente acelerado com a colonização do novo mundo a partir do século 21 e as revoluções industriais. Tornou-se necessário agora ouvir o povo da floresta.

“Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo que ainda não tem cerca”, diz Kopenawa, ressaltando a questão da “cerca” das propriedades rurais e do uso puramente econômico da floresta amazônica. A resposta dos brancos sempre foi e é bizarra: incluir os indígenas na economia capitalista e transformá-los em pobres urbanos.

Perspectivismo 

As ideias de Viveiros de Castro têm influenciado uma série de áreas do conhecimento, seja a psicanálise de Christian Dunker, seja a pesquisa de Luís Augusto Fischer nos estudos literários. É uma alternativa para as linhas de pensamento que parecem ter atualmente se esgotado. E nada se esgotou mais do que as formas econômicas usadas pela globalização como as do agronegócio e da mineração. Essas atividades consomem muita água e exigem a derrubada de áreas florestais em larga escala.

Ideias para Adiar o Fim do Mundo (Companhia das Letras, 64 páginas)

O problema maior está na visão de que homens brancos e capitalismo são centrais para a vida do planeta. Essa perspectiva considera que indígenas podem ser mortos, expulsos de suas áreas; animais e plantas servem apenas para consumo; e certos povos são inferiores. Em resposta a esse projeto catastrófico, o perspectivismo põe um freio e refaz a visão de mundo voltada só para exploração de recursos naturais. A síntese das ideias de Viveiros está nos livros “A Inconstância da Alma Selvagem” e “Metafísicas Canibais”.

A dúvida é obviamente se o perspectivismo pode substituir o racionalismo destruidor que foi predominante nos últimos cinco séculos. Não há mudanças que se realizam de maneira tão imediata. Mas é fundamental abalar as certezas do mundo ocidental que, pelo menos na velha Europa, já percebeu o tamanho do rombo deixado pelas mudanças climáticas. Krenaks e Kopenawa serão cada vez mais relevantes porque sabem, na pele, os resultados da “queda do céu” e da proximidade de um “fim do mundo”.