Um filme extraordinário e perturbador que acompanhará você por muito tempo depois dos créditos finais Eric Chakeen / A24 Films

Um filme extraordinário e perturbador que acompanhará você por muito tempo depois dos créditos finais

Robert Eggers gosta de provocar no espectador sensações que o transportem direto para a atmosfera de terror e desajuste mental que sempre há em seus filmes. No caso de “O Farol” (2019), não se trata só de tecer excelentes metáforas sobre a loucura; o diretor quer que o público exceda seus limites, valendo-se para tanto de recursos cinematográficos de alta qualidade, como o design de som e a fotografia. 

O Farol” é um pesadelo, e tanto pior que não seja o de quem assiste ao longa, porque não se sabe ao certo quando se pode vislumbrar um fim para a cornucópia de imagens assombrosas que se veem na tela. Sabendo que desperta na audiência um pânico genuíno, de que não se pode fugir, Eggers consegue se igualar ao Alfred Hitchcock (1899-1980) de “O Pássaros” (1963) e “Psicose” (1960), assemelhando-se mais a este do ponto de vista estético, visto serem ambos em preto-e-branco, bem como elevar sua história à altura dos grandes trabalhos de F.W. Murnau (1888-1931), a exemplo de “Nosferatu” (1922) e o centenário “Caminhada Noite Adentro” (1921).

As personalidades psicóticas de Thomas e Ephraim, cada qual com suas obsessões muito particulares, fica evidente desde a primeira tomada de “O Farol”. Tudo é dominado por uma névoa densa de sombras, a fim de se transmitir a ideia da completa indefinição em que vivem os personagens de Willem Dafoe e Robert Pattinson, como se com a opção por rodar em preto-e-branco, Eggers quisesse insinuar ao público o cinza, que não é nem um, nem outro, mas uma noite eterna ansiando por uma aurora que nunca raia. Começa-se a conhecer o dia a dia dos dois, Thomas, o marujo mais velho vivido por Dafoe, chefe da missão, responsável por supervisionar as atividades de Ephraim, de Pattinson — e é claro que já neste arco dramático existem conflitos de alguma profundidade. O veterano não faz a menor questão de ser gentil com seu subordinado, dando um jeito de, ao vistoriar a faxina pesada e os permanentes consertos no maquinário, esclarecer que ali não há relação alguma se não a estritamente profissional. Por óbvio, a proximidade compulsória entre os dois, abandonados num lugar qualquer no meio do oceano, tendo apenas a atrasada Nova Inglaterra do século 19 como referencial de civilização, gera episódios de intimidade, ainda que artificial e dispensável. Como quando Thomas se dirige a Ephraim em termos falsamente carinhosos, que denotam seu desprezo por ele, ou conta mais uma de suas intermináveis histórias, não se furtando em dar vazão aos imperativos de suas entranhas quando sente vontade — o que não deixa de ser um comportamento ainda mais ultrajante.

Todo baseado em pequenas sutilezas, o enredo de “O Farol” se utiliza de elementos do fantástico para discorrer sobre a presença do mal, do elemento diabólico na vida do homem, como em “A Bruxa” (2015): a ronda de um satanás edulcorado, sob a forma de uma gaivota caolha, a perseguir Ephraim. No filme de 2015, Thomasin, a protagonista de Anya Taylor-Joy, também era atormentada por uma versão mitigada (mas nem tanto) do diabo, que se manifestava para ela possuindo Black Phillip, o bode preto da família, tão persuasivo que acaba por perder a garota. No que diz respeito à ave marinha, o pássaro se revela como a serpente para Eva no “Gênesis”, desafiando Ephraim (“o duplo”, em hebraico antigo, isto é, um sujeito esperto, ardiloso), a investigar os mistérios por trás dos hábitos do parceiro, o que, como se dá com Thomasin, igualmente não acaba bem para o subalterno, num desfecho que remete ao mito grego de Prometeu.

Duelo também é a palavra mais precisa para definir o trabalho de Willem Dafoe e Robert Pattinson, um melhor que o outro. O ex-protagonista da saga “Crepúsculo” vem apresentando a disciplina necessária a fim de se tornar um intérprete digno das oportunidades que lhe são confiadas. Pattinson derrapa, conforme sua abordagem do delfim da França, em “O Rei” (2019), de David Michôd, mas também deixa no espectador um gosto de quero mais, como se depreende de suas atuações marcantes no thriller “O Diabo de Cada Dia” (2020), dirigido por Antonio Campos, e “Água para Elefantes” (2011), de Francis Lawrence, drama romântico inspirado. Já o Thomas de Willem Dafoe é mais um dos grandes papéis de sua carreira. Dando vida a um tipo neurastênico, repulsivo, mas também cativante pela verossimilhança, Dafoe — merecidamente consagrado em produções a exemplo de “Platoon” (1986), de Oliver Stone, e O Beijo da Mulher Aranha (1985), do argentino-brasileiro Hector Babenco (1946-2016) — rivaliza com o colega, como se verdadeiramente tomados por seus personagens, proporcionando ao público um espetáculo digno do grande cinema.

Um ataque aos sentidos, nada se permite definir em “O Farol”, e é esse justamente o seu trunfo. Viver numa ilha na costa nordeste dos Estados Unidos, num tempo ainda mais obscuro que o nosso, deve ser o bastante para se tentar desvendar a insânia de seus protagonistas. Ir além pode ser uma viagem sem volta.