“Estadunidense” e “norte-americano”: as palavras e a fraude

“Estadunidense” e “norte-americano”: as palavras e a fraude

Americanos não se acham nem se chamam de “estaduninenses” ou “norte-americanos”, pelos simples fato de que não o são mesmo: moram num país chamado América, que reúne 52 Estados unidos sob esse nome. Quem tem um grau elementar de informação ou já esteve por lá sabe que esse negócio de “estaduninense” é uma invenção da esquerda autoritária encampada alegremente pela esquerda desinformada. Ambas parecem desconhecer que ali nas vizinhanças tem um país chamado Estados Unidos Mexicanos. Se fossem um pouco mais sérios e rigorosos, chamariam os americanos de “estaduninenses do norte” e os mexicanos de “estaduninenses do sul” Ainda farão isso, a crer no retrospecto de equívocos dessa turma nas últimas décadas.

A linguagem é implacável e costuma desmascarar vícios e hipocrisias. Fui apresentado a essa formulação por Jorge Semprun (1923-2011), o quase sempre brilhante político, escritor e roteirista franco-espanhol, que a desenvolveu com maestria em “Netchaiev Está de Volta” (Netchaiev est de retour), publicado aqui em 1988 pela Paz e Terra. O autor dos roteiros de “Z” e “A Confissão” (ambos de Costa-Gavras) afirma que os partidos da esquerda autoritária que se autoproclamam de vanguarda, ao perderem paulatinamente o contato com as massas que dizem representar, deixam de falar a mesma linguagem que elas. O princípio da ruptura se dá exatamente através da linguagem. Sabe-se que, quando as pessoas não falam a mesma língua, elas tendem a não se comunicar. Na verdade, a História prova que elas tendem a brigar e até mesmo a guerrear por causa disso.

Os representantes e seguidores dessa esquerda caduca respeitam com fervor totêmico as teorias magníficas que dizem o que deve ser feito para o “bem” das pessoas, mas não as próprias pessoas, os tais seres humanos. Enxergam massas e multidões em seus delírios messiânicos, mas não o morador do outro lado da rua, alguém do círculo íntimo ou familiar, as pessoas de carne e osso, que fazem feira, levam os filhos à escola ou vão ao futebol. O que interessa a esses comissários é o “povo”, um ente de sete cabeças, oitenta olhos e quatrocentos chifres que sonham estreitar nos braços, ensinar, educar, e alimentar, em suma, proteger, mas às vezes punir e fuzilar, que fique bem claro, pois a herança violenta e sanguinária baseada nos sábios ensinamentos de Stálin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot e Guevara, companheiros de boa cepa, não pode nem deve ser esquecida.

Mario Vargas Llosa, o prêmio Nobel de literatura a quem essa mesma esquerda paranoide agride por não ter como se contrapor intelectualmente, escreveu certa vez que a fidelidade às ideologias, e não às pessoas, é uma das provas do desprezo que essa parcela da esquerda sente pelo mundo real. Ela prefere optar por modelos teóricos e esotéricos, mecânicos, “religiosos” na essência e que, aliás, faliram ruidosamente em todos os lugares em que foram experimentados. Talvez por coincidência, quanto mais falhavam e faliam, mais reprimiam.

De volta à questão “estadudinense” ou “norte-americana”, abro aspas para as palavras do professor, tradutor e jornalista Marcos de Castro, ex-Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Rede Globo, Manchete, Realidade e O Dia, em seu livro “A Imprensa e o Caos na Ortografia” (Editora Record, 1999): “Pergunte a um americano sobre sua nacionalidade. A resposta será sempre: ‘I am an American’, jamais ele dirá ‘I am a north-american’. Terá toda a razão. Porque o nome do país dele é ‘America’. Não há cidadão norte-americano: há cidadão americano. Não há “governo norte-americano”. Verifique. Você só vai encontrar ‘american government’. Não há Congresso norte-americano, apenas ‘american Congress’. (…) Nenhum sentimento de altivez se quebra por usarmos as palavras corretas. O nome do país é América, o gentílico é ‘americano’. Norte-americano – devemos insistir — é uma referência continental, inclui mexicanos e canadenses. (…) Se norte-americano é um gentílico, pois muita gente usa a expressão como referência a um país — os Estados Unidos da América —, então o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês) seria um tratado entre os Estados Unidos e os Estados Unidos. Mas não é bem assim. O Nafta, criado em janeiro de 1994, reúne o Canadá, os Estados Unidos e o México, porque ‘norte-americanos’, como não ignoram os que estudaram geografia política no ginásio e os que deram nome a esse tratado, são o Canadá, os Estados Unidos e o México, ou os canadenses, os americanos e os mexicanos. ‘Norte-americano’, portanto, é uma referência continental. Não é, e não pode ser, o gentílico de um país. (…) A expressão ‘Estados Unidos’ apenas define que tipo de país se trata: uma república federativa formada através da união de um certo número de estados. A esses estados, unidos, deu-se o nome de ‘América’.”

Depois das sábias palavras de Marcos de Castro, o bom senso recomenda encerrar por aqui, mas não antes de lembrar aos desmemoriados de plantão: o nosso país já se chamou Estados Unidos do Brasil por um bom tempo (1891 a 1969) e ninguém, do mais analfabeto ao maior gênio da raça, nos chamava de “estadunidenses” por causa disso. Talvez um ou dois malucos parnasianos, numericamente insignificantes. Hoje, não, eles se transformaram em autênticas hordas de bárbaros modernos, tuitando e facebookando erros primários como esse.

O problema da ideologia radicalizada não é tanto idiotizar as pessoas, mas fazer isso enquanto as iludem e convencem de que fazem a coisa certa, que estão no caminho certo, que tudo está bem. Enquanto isso, o abismo não quer nem saber e se aproxima perigosamente.