Seinfeld na Netflix: a arte de fazer piada sobre o nada

Seinfeld na Netflix: a arte de fazer piada sobre o nada

A Netflix agora é a casa definitiva do comediante norte-americano Jerry Seinfeld. As nove temporadas do seriado “Seinfeld” foram exibidas de 1989 a 1997 e estão agora na íntegra na plataforma de streaming. Também podem ser vistos shows, documentários e a série “Comedians in cars getting coffee”, no qual o ator passeia de carro com grandes nomes da comédia nos Estados Unidos — com exceção do episódio do encontro com o presidente Barack Obama, na Casa Branca.

O relançamento de “Seinfeld” é um teste de popularidade para quem ocupa a posição de maior recordista de vendas de DVDs, batendo concorrentes como a série “Friends”. Um seriado que estreou há mais de 30 anos e continua a render frutos. Em 2017, vi uma fila imensa de pessoas na porta do Teatro Beacon em Nova York, coisa de dobrar o quarteirão.  Os ingressos estavam esgotados meses antes, para assistir ao stand-up do comediante. Esse show está no Netflix com o título “23 hours to kill”.    

O fenômeno Seinfeld agrada quem gosta das comédias de situação, as sitcoms, que trazem capítulos pequenos (em torno de 20 minutos cada) e piadas muito rápidas. Mas a grande questão é: como seus criadores conseguiram fazer um programa a partir do nada e para tratar de assuntos sem qualquer relevância? Os diálogos dos personagens surgem do nada e nunca chegam a algum lugar. Ainda assim, despertam o lado inusitado, surpreendente e, muitas vezes, absurdo de uma história.

Uma hipótese para entender o êxito de “Seinfeld” é a tradição judaica do humor. Não existem piadas para rebaixar ou desqualificar os “outros” (mulheres, negros, latinos, gays). O chiste judaico, para lembrar o termo de Freud, expõe a capacidade de rir de si mesmo. Uma autodepreciação que, na verdade, mostra um senso de superioridade. Judeus zombam de outros judeus — algo que se vê fartamente na escrita de Isaac Bashevis Singer, Philip Roth, e obviamente nos filmes de Woody Allen.

Um episódio muito conhecido é o do “nazista da sopa”. O personagem Cosmo Kramer (um clown beckettiano) descobre a melhor sopa de Nova York. Só tem um problema: o cozinheiro exige regras duras de conduta ao servir e, se o comprador burlar as exigências, ele grita “no soup for you”, se negando a vender. O humor está nas diversas tentativas de Seinfeld, George e Elaine de comprar a tal sopa — o que gera situações absurdas, com referências claras aos campos de concentração.

Em outro episódio, Seinfeld leva Eliane para um jantar de sua família tipicamente judaica. Lá pelas tantas, a dupla começa a criticar a paixão das pessoas por pôneis. Mas a tia do protagonista fica ofendidíssima e abandona a mesa porque ela tinha um desses cavalinhos na infância, ainda na Polônia, antes de migrar para os Estados Unidos. No dia seguinte, a mulher morre, e todos (sobretudo os amigos) dizem insistentemente que a morte foi provocada pelos comentários infames de Jerry no jantar.  

História também clássica é o flagrante da mãe de George que o encontra se masturbando no banheiro de sua casa. Uma situação absurda que leva a um desdobramento ainda mais surreal: os quatro amigos fazem uma aposta para ver quem consegue ficar mais tempo sem recorrer ao “sexo solitário” e se tornar o “mestre do meu domínio”. As apostas são frequentes na série e servem para mostrar as invejas, os ciúmes e as rixas intermináveis entre Seinfeld, George, Kramer e Elaine.

A velocidade das piadas em “Seinfeld” tem certamente fonte na tradição do formato de stand-up. Num dos episódios, Jerry cita o comediante Lenny Bruce (1925-1966), que foi um pioneiro dos shows de um só ator e se tornou personagem da série “A Maravilhosa sra. Maisel” (exibida pelo Amazon Prime Video). Lenny tinha um humor ofensivo e até mesmo melancólico, o que gerou processos judiciais e o levou à morte trágica. Até hoje é um símbolo da liberdade de expressão e dos comediantes.

O sucesso de “Seinfeld” estimulou o produtor da série, Larry David, a criar em 2000 o seriado “Segura a Onda”. São 11 temporadas com histórias de Larry também interpretando a si mesmo. Um dos episódios simula uma discussão para um programa especial que reúna o elenco de “Seinfeld”. Diga-se, aliás, que ninguém mais da série original fez sucesso — com exceção de Larry. Em 2020, foi lançado o livro “Será que Isso Presta?”, que reúne histórias biográficas de Jerry e piadas dos seus shows.