O filme da Netflix que vai deixar você sem fôlego

O filme da Netflix que vai deixar você sem fôlego

Quanto menor o elenco de um filme, maior deve ser a excelência da atuação. Enredos que sobressaem frente aos demais justamente por disporem de poucos — e, muitas vezes, mesmo de um só ator — tem de suar a camisa a fim de conseguir prender a atenção do público. A missão se revela tanto mais árdua se esse ator surge todo o tempo confinado num espaço pouco maior que seu próprio corpo, experimentando em vida algo que decerto deve ser o mais próximo da morte, ou de um de seus atos subsequentes para a matéria, encarcerada para sempre num ataúde dois metros abaixo do chão. Vez por outra, diretores se aventuram nessa fórmula muito particular de se narrar uma história, que tem se mostrado exitosa, em especial no que diz respeito à ficção científica. “Ela” (2013), dirigido pelo americano Spike Jonze, conta com alguns outros intérpretes além do protagonista Joaquin Phoenix e da coadjuvante de luxo Scarlett Johansson ao se debruçar sobre a história de um escritor solitário que cai de amores por sua assistente virtual, mas a trama opta por se concentrar com mais vigor sobre as duas pontas desse improvável romance, precisamente onde a narrativa vai atingindo o clímax. Esse também é o caso de “Oxigênio” (2021).

O argumento da produção realizada pelo bissexto Alexandre Aja se assemelha muito ao de “Ela”. Em “Oxigênio”, o francês — cujo filme anterior, “Amaldiçoado”, sobre um homem acusado pelo estupro e morte da namorada, remonta a um distante 2013 —, também se vale da inteligência artificial para levantar sua história. Elizabeth Hansen, vivida pela ótima Mélanie Laurent, a Shosanna de “Bastardos Inglórios” (2009), dirigido por Quentin Tarantino, é, como se depreende ao longo da trama, uma geneticista que se dedica a estudos que prometem desenvolver uma versão melhorada do homo sapiens. De uma hora para a outra, Hansen acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo ali, completamente isolada do mundo e fora da órbita terrestre. Contando apenas com um dispositivo chamado Medical Interface Liaison Operator (“operador de contato médico de ligação”, traduzindo-se livremente), ou MILO (dublado por Mathieu Amalric), para se manter viva, uma vez que o nível de oxigênio disponível cai ininterruptamente, ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que morra asfixiada.

Outro tema clássico de que Aja se vale em “Oxigênio” é o da máquina que se rebela e tenta — e muitas vezes, efetivamente, consegue — tomar o lugar do homem, sem, claro, se melindrar por pruridos éticos. O filme-fetiche nesse aspecto continua a ser, passado mais de meio século, “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), do mestre Stanley Kubrick (1928-1999). Em “2001”, Kubrick apresenta um roteiro que dosa com toda a sutileza tiradas existencialistas; conjecturas sobre o que seria do homem em meio à evolução da tecnologia, processo que, acertadamente, tachou como irreversível; e hipóteses acerca da vida em outras estruturas celestes. O HAL 9000 kubrickiano, bem como MILO em “Oxigênio”, executa suas funções com o desempenho irretocável que se espera de um mecanismo baseado em pura ciência. Contudo, em algum lugar da narrativa que o espectador não alcança direito, o caldo entorna. Hansen, da mesma forma que a tripulação comandada pelo astronauta Bowman em “2001”, se encontra perdida, à mercê das frias decisões de um amontoado de algoritmos, que, a dada altura, lhe informa que suas chances de sobrevivência são de 0%. É nítida uma ponta de cinismo, morbidez e perversão tanto em HAL como em MILO (mais naquele que neste, é verdade), o que, aprofundando a reflexão, não é absurdo algum, uma vez que foram criados por mãos humanas, coordenadas por cérebros dominados pela sempiterna maldade da natureza do homem. Em se esticando um pouco a corda do raciocínio, poder-se-ia incluir no rol desses equipamentos demoníacos a Ava de “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2015), do britânico Alex Garland, certamente o sci-fi mais aterrorizante do século até o momento, justamente pela doçura de Alicia Vikander. Ao contrário do que se passa em “Ex_Machina”, a humanidade não é espinafrada por um dispositivo que ela mesma desenvolveu, mas há que se apontar algumas ressalvas. Hansen não é mais uma pessoa exatamente, e passa a habitar outro planeta, não a Terra. Aqui, Aja cumpre seu papel de artista e fomenta discussões quanto à possibilidade — e, quiçá, a necessidade — de se projetar um exemplar aperfeiçoado do homem. O niilismo do diretor francês é, por óbvio, muito mais contido que o de Kubrick e Garland; contudo, suas proposições acerca do futuro que pode nos esperar a todos, sabe-se lá se daqui a duas horas, dez anos ou cinco séculos, não deixa de escandalizar. Ao não se atrever a reinventar a roda e se utilizar da estética habitual em ficções científicas que se desdobram fora do domínio terrestre, celebrizada por Stanley Kubrick, em “Oxigênio” o público sente-se familiarizado com a história de pronto, se podendo dispensar glacês retóricos e ir-se direto ao ponto, não sem antes lançar uma ou outra isca e sugerir eventuais reviravoltas, controladas, dada a exiguidade do cenário, mas ainda assim vigorosas, graças ao talento de Laurent.

De maneira a um só tempo despretensiosa e séria, “Oxigênio” insere a audiência num drama inusitado, mas capaz de fundir a cabeça de qualquer um. À medida que deposita confiança em criaturas que não conhece de todo, o homem renuncia à sua humanidade, se torna mais frágil, mais vulnerável, mais infeliz. O cinema nos lança essa evidência ao rosto há, pelo menos, 50 anos.