Notas sobre as formas de amizade

Notas sobre as formas de amizade

Somente uma mulher consegue entender a dimensão da amizade entre Lila e Lenu, as personagens de Elena Ferrante. Quem me deu a dica foi Taciana, minha esposa, quando assistíamos à versão da tetralogia napolitano na HBO, “A Amiga Genial”. A cumplicidade, as invejas, os ciúmes das duas meninas italianas são característicos do universo feminino. Elas aparecem com seus sentimentos mais nobres e mais baixos, e sempre demonstram a intensidade de uma amizade indissolúvel. O amor romântico, dizem os filósofos, condenou a possibilidade de amizade entre mulheres e entre homens. As relações verdadeiras seriam apenas o afeto de homens com mulheres, na forma de casamento. O “amor que não ousa dizer seu nome” ficou assim socialmente condenado — inclusive a simples proximidade de pessoas do mesmo sexo.

Outra amizade feminina memorável, mas no mundo real: a filósofa alemã Hannah Arendt e a escritora norte-americana Mary McCarthy. A estudante judia que se apaixonou pelo professor simpático ao nazismo (Martin Heidegger), e a menina católica que cavou o espaço dela no mundo literário de muitos homens. A amizade delas ficou registrada numa belíssima coleção de cartas, reunidas no livro “Entre Amigas”.

Uma carta de Mary mostra a importância da amiga Hannah em sua vida: “Meu romance está avançando, mas você pesa horrivelmente em minha consciência cada vez que aparece sexo. Você me puxava pelo cotovelo dizendo ‘Pare’ durante uma cena de sedução que acabei de escrever. E suas reprimendas imaginárias foram tão eficazes que reescrevi toda ela para adotar o ponto de vista do homem, em lugar do da heroína. Mas, mesmo assim, temo que você não goste”.

Era Uma Vez na América (1984), Sergio Leone
Max (James Woods) e Noodles (Robert de Niro)

O contraponto masculino está no filme “Era Uma Vez na América” (1984), de Sergio Leone. Quer compreender a relação entre dois homens? Acompanhe os diálogos e os olhares dos personagens Max e Noodles. Eles são judeus pobres, imigrantes, que vivem numa Nova York da primeira metade do século 20. Fazem juntos todos os ritos de passagem, até que a ambição sem limites de um deles leva à tragédia.

Noodles (feito por Robert de Niro) vai carregar por mais de 30 anos a culpa pela morte de Max (James Woods). Eles se tornaram gangsteres, indo de pequenos a grandes crimes. O luto persiste até o dia em que uma carta misteriosa leva Noodles de volta a Nova York e à exumação do passado próprio e dos amigos. Os diálogos finais mostram como se faz uma amizade masculina e a dificuldade do perdão entre eles.

Seinfeld: Kramer, George, Elaine e Jerry

Relações de amizade são complexas porque exigem múltiplas interações, com os mais variados tipos humanos. Anos atrás, o pensador francês René Girard disse que se interessava muito pela relação enlouquecida dos quatro amigos na série de televisão “Seinfeld”. Chegou a pensar em fazer um estudo, mas recuou de imediato ao imaginar a reação negativa dos amigos e amigas da universidade.

“Todas as personagens são inteligentes, podem permitir-se debochar do ‘politicamente correto’, dizer piadas sobre os judeus e sua obsessão de denunciar o antissemitismo, uma vez que Seinfeld é judeu. É divertido. É também o único programa a falar de um fenômeno quase epidêmico como o da anorexia e da bulimia”, disse Girard, que morreu sem deixar o estudo das vidas de Jerry, George, Elaine e Kramer. 

Friends (1994), David Crane e Marta Kauffman
Friends: Joey, Phoebe, Rachel, Ross, Chandler e Monica Geller

Grupos de amigos e amigas fazem parte das populares séries de televisão e streaming como “Friends”, “Sex and The City” e a recente “À Beira do Caos” (criada e dirigida pela atriz francesa Julie Delpy para o Netflix). Os personagens só existem como membros de uma comunidade, mesmo que minúscula, de pessoas.

O Segredo dos Seus Olhos
Benjamin e Sandoval

Tipo interessante de amizade é o que se pode chamar de modelo quixotesco. Ele surge com encontro de pessoas que representam os polos da razão e do devaneio. São duplos que se complementam com a mistura de loucura, humor e sentido trágico. Penso nas amigas do filme “Thelma e Louise” (1991), de Ridley Scott, e nos amigos Benjamin e Sandoval de “O Segredo dos Seus Olhos” (2009), de Juan José Campanella.

As relações entre amigos e amigas ganharam um ar solene em 1994, quando o filósofo Jacques Derrida publicou o livro “Políticas da Amizade”. Foi uma provocação e tanto. O pensador franco-argelino propôs a ideia de que a amizade seja dissociada da questão fraternal. Contra o pensamento grego, os amigos não devem ser vistos como irmãos ou membros de uma mesma família.

Derrida sugere que os amigos se integrem no espaço público. Com isso, desloca-se a amizade da esfera da “intimidade”, a relação entre indivíduos isolados, para o espaço da sociabilidade. Em outras palavras mais simples, os amigos e as amigas não devem ser “de sangue” e da família, mas “da rua” e do mundo. Assim, podemos conviver com quem discordamos radicalmente. A hospitalidade acima de tudo.

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Michael e Freddo

A relação fraternal está historicamente arraigada na forma de pensar a amizade. Exemplar disso são os personagens Michael e Freddo, os fratelli Corleone da trilogia “O Poderoso Chefão”. A traição só pode ser algo imperdoável, a ser pago com o próprio sangue, porque impera a ideia de fraternidade. Nada de perdão e de hospitalidade. A cena emblemática: o abraço em que Michael sinaliza para um capanga que ele deve matar seu irmão Freddo.

Em diálogo com Derrida, o filósofo camaronês Achille Mbembe desenvolveu nos últimos anos a tese de existência de “políticas da inimizade”. Segundo ele, houve um retorno na atualidade ao pensamento “amigo/inimigo” que norteou o fascismo e o nazismo. Resumo dessa concepção: se uma pessoa não pensa igual ao que penso, ela deve ser eliminada porque é inimiga. É a violência que passa a constituir as relações humanas no mundo contemporâneo. Adeus à hospitalidade de Derrida.

Espaço de amigos/inimigos são as redes sociais de internet. O lado positivo está na formação de redes com gente que mora muito longe e jamais se viu pessoalmente, ainda mais na pandemia da Covid-19. Tornam-se amigos e amigas, dentro de bolhas virtuais que compartilham afinidades e semelhanças. Desafio: uma amizade nos moldes propostos por Derrida, que tenha discordâncias sem crimes de sangue como os dos filmes de máfia.