Um milagre chamado Terra

Um milagre chamado Terra

Você mora num abrigo (vamos chamá-lo de Abrigo Um) confortável e repleto de víreres. Lá fora o frio pode ser lancinante ou simplesmente cozinhar os seus ossos, de tão quente. Seja qual for o caso, lá fora é tão hostil quanto sair em caçada nas florestas da Sibéria, em uma noite de inverno. Se perder o Abrigo Um suas chances de sobreviver se complicam bastante, pois o abrigo semelhante ao nosso, mais próximo, se encontra muito depois de 12,7 mil quilômetros, que é a distância entre os dois polos da Terra. Pior ainda, você sequer possui um meio de transporte que o leve até lá; até porque “até lá” ainda não existe, a rigor. Você é um terráqueo e esta é a sua situação.

Por diversas razões é melhor começar a se preocupar com isso, visto que seu abrigo começou a pegar fogo, o ar está ficando irrespirável e o suprimento de água está perigosamente em nível de alerta. Sem contar que sua família aumenta a cada dia — pois você se reproduz como um coelho — e a comida está escasseando. Ou você resolve essas coisas internamente (difícil, porque os membros da família não se entendem) ou terá de se lançar nesse ambiente exterior, em busca daquele outro abrigo improvável. Precisa fazer isso antes que seja tarde demais. Marte (nome que você deu ao Abrigo Dois) não é a sua melhor opção. É apenas a que te resta até o momento, por dois bons motivos: porque está mais perto do Abrigo Um, e porque você tem um “probleminha” técnico por resolver: ainda não consegue viajar na velocidade da luz. Então, para chegar ao Abrigo Dois você levará ainda um ano e dois meses, e no caminho correrá o risco de adquirir câncer ou ficar louco, pois o percurso é solitário e radioativo. Se lograr êxito, comprovará que Marte é inóspito, pois não tem atmosfera e o ar é irrespirável: 93% de dióxido de carbono, quase nada de oxigênio.

Aí você explica para um companheiro de travessia o tamanho do desafio que terão para ir até esse lugar… horrível! A distância do Abrigo Um à estação mais próxima que vocês conseguiram chegar até hoje (Lua) é de 384 mil quilômetros. Marte é 148,4 vezes mais longe do que isso, pois está a 57 milhões de quilômetros (a intenção não é te deixar melancólico, mas dizer que a matemática é cristalina). Uma forma didática de conceber essa distância é reduzir a escala planetária a proporções razoáveis: você coloca uma bolinha de gude, Marte, a 50 metros de outra bolinha de gude, a Terra. Em escala aproximada, é quase o mesmo que você atravessar o comprimento de dois lotes urbanos, de uma bolinha até a outra, boiando naquele escuro vazio e radioativo. Mas não seja esperto: você terá de atravessar esses dois lotes na sua escala em relação às duas bolinhas de gude, claro! É muito espaço para um organismo tão pequeno quanto um vírus atravessar. Mas tranquilo: a uma velocidade de 27 mil km/h você e seu companheiro de viagem levarão 440 dias da Estação Um a Estação Dois — onde (disso você não sabia!) terão de produzir o combustível de retorno. Muito arriscado, muito complexo, também. Mas é o que te resta, para o momento.

A Equação de Drake ficou famosa nos anos 50 por estimar a quantidade possível de abrigos (“exoplanetas”) aptos a conter vida. A fórmula implica sete variáveis, incluindo a água. Portanto, é um dígito mais difícil de acertar do que na mega-sena. É consenso que, considerando a extensão do Universo observável, tais planetas devem ser da ordem de milhões. Mas não se alegre: considerando a extensão do Universo observável, haver milhões de exoplanetas iguais a Terra não te ajuda em absolutamente nada. E se você ainda não compreendeu a raridade do fenômeno Terra com base na mega-sena, achamos que tem razão. Para ser mais preciso, a chance de existir um lugar como esse, ao invés do caos, é da ordem de um em um quintilhão, estimam os astrofísicos. Ou seja: o Abrigo Um foi o grão de areia sorteado entre todos os grãos de areia que há neste planeta! Até o momento a Terra é excepcionalmente única, no Universo, em termos de meio ambiente. Do ponto de vista estatístico, a palavra “milagre” tangencia com a verdade: você vive mesmo numa ilha de milagres, e por isso a poesia é justificada. Esta é a única ilha de milagres no meio do nada, em inconcebíveis trilhões de quilômetros espaço adentro.

Agora talvez você já esteja convencido de que é quase impossível encontrar outro planeta tão receptivo à sua presença. Quem sabe seja mais fácil conter o fogo em curso e racionalizar o consumo de água no Abrigo Um… E mais inteligente, também, tentar chegar num acordo com sua família, para juntos encontrarem uma solução para o desastre iminente. Porque não lhes resta outra escolha.

Se as condições de vida na Terra forem destruídas num futuro próximo (segundo a ONU já chegamos “à beira do abismo”), estaremos bem ferrados. O abrigo que fica mais perto da Terra, com condições semelhantes às da Terra, localiza-se “aqui mesmo”, na Via Láctea: chama-se Próxima Centauro B. Até o nome ajuda: Próxima está a 4 anos luz de distância, ou 37 trilhões de quilômetros daqui. Portanto, qualquer ambiente minimamente comparável ao do Abrigo Um só pode ser alcançado depois de quatro anos viajando a 300 mil quilômetros… por segundo. Não temos essa tecnologia, nem tempo para colocá-la em prática. Só em teoria existe uma solução para isso, chamada propulsão de Alcubierre. O truque, muito simples, consiste em dobrar o espaço-tempo, que se contrai à frente da espaçonave enquanto se expande para trás, de forma a contornar aquele problema essencial, da velocidade da luz. A teoria da relatividade, de Einstein, admite essa possibilidade. Mas há outro problema: a energia necessária para dobrar o espaço-tempo equivale à do planeta Júpiter, que é mil vezes maior do que a Terra. Ou seja, enquanto esse nonsense for apenas a alucinação de um cientista “louco”, temos que nos contentar com a pior solução, Marte, e evidentemente não nos destruir.

Por tudo isso você percebe o quanto nossa situação é dramática e o quanto você deveria ser grato e mais responsável com o Abrigo Um. Bem mais responsável.