O significado na arte contemporânea

Diferentemente das outras artes, a pintura tem impacto imediato: você olha e tem o conjunto diante de você. Ela não transcorre no tempo como um filme, um livro, uma dança ou a música: é instantânea. Distante das diversas ficções, a pintura não é uma narrativa (exceção feita à pintura histórica, como o muralismo mexicano). Em regra, o objetivo da pintura não é contar um acontecimento, nem por partes nem de forma alguma. Quando ilustra as pessoas ou a natureza limita-se a uma cena congelada no tempo. Tudo o que se pode fazer é interpretar essa imagem congelada, que pode ser real, simbólica, conceitual, abstrata, figurativa etc. Se todas as pinturas tivessem o mesmo e monótono estilo — digamos, tão mimético quanto o de John Singer Sargent — as pessoas ficariam maravilhadas com o talento do artista. Mas perderiam o vasto mundo da invenção formal e da penetração psicológica, que por definição caracteriza todas as artes.

Diante de Hans Holbein, por exemplo, uma pintura de Edvard Munch parece mal feita, até muito mal feita. Porém Edvard Munch consegue ser muito mais intenso psicologicamente que Holbein porque desfigura a imagem até torná-la um vulto, e não por outro motivo. Esse efeito jamais seria obtido por meio da imitação. Por isso não basta a realidade como os olhos a enxergam, mas interessa também como sentimos as coisas na alma. Não fosse assim não existiria poesia, mas apenas descrição das coisas. E a única maneira de tornar visível nossos estados interiores é utilizar as técnicas adequadas para expressá-los: traços suaves dizem uma coisa, agressivos dizem outras, e assim por diante. Daí porque, embora pareça mal feito, Munch é perfeito. Seu “O Grito” é perfeito porque somente daquela forma, com aquele desenho e com aquelas cores foi possível exprimir não o que viu, mas o que sentiu. “O Grito” é a medonha expressão da angústia existencial.

Este o ponto: o objetivo da pintura não é apenas imitar o que vemos, mas também expressar o que sentimos e também o que conhecemos. Há um estilo de pintura para cada uma dessas verdades humanas, e é por isso que a pintura é tão rica de formas, que vão do figurativo ao abstrato. Infelizmente compreendê-la não é fácil. Requer capacidade intelectiva, perceptiva ou, simplesmente, afinidade. Quem gosta tem menos dificuldade em compreendê-la, similar à música e à poesia em seu hermetismo.

Da mesma forma que Sargent ou Holbein são ótimos exemplos daquilo que vemos, Munch ou Henri Matisse são ótimos exemplos daquilo que sentimos, de oposto inclusive: um desperta angústia, o outro relaxamento. E se quisermos bons exemplos daquilo que podemos conhecer mentalmente, podemos chamar Pablo Picasso e Piet Mondrian à discussão. Pois a base da arte de Picasso e de Mondrian é racional e não emotiva. O espanhol é multiforme, mas, diante de um quadro dele, em regra pode-se perguntar: como Picasso “montou” isso? O símile ideal de sua fase cubista é o quebra-cabeça, pois o Cubismo é uma operação mental, do intelecto. Nesse sentido, não avalie o desenho cubista comparando-o a coisas reais. Avalie-o como resultado de uma pesquisa formal, em que o plano (relação forma e fundo) é inteiramente devassada.

Graças ao Cubismo, boa parte da pintura contemporânea é uma construção intelectual. A história dessa pintura é, de certo modo, narrativa dos desdobramentos e possibilidades daquele quebra cabeça levados a exaustão. O Cubismo é de fato o melhor exemplo dessa evolução contínua da forma: Cézanne (ainda figurativo) é a origem e Mondrian (completamente geométrico), é o limite extremo dessa pesquisa ancorada na consciência, fria e de pretensões universais. Nesse sentido, um quadro pós-Cézanne é uma estrutura formal, dotada apenas de problemas intrínsecos relativos a questões como: espaço, cor, gesto, forma, textura etc.

Em larga medida a pintura contemporânea é uma arte completamente independente e sem referencial, salvo a de seus próprios elementos constitutivos. O senso comum gosta dela pelo motivo errado: porque fica bem na parede. É um item de decoração. Artistas e críticos vão além porque conseguem olhar para um quadro e descobrir suas premissas visuais, sensoriais, emotivas e intelectivas. E assim também conseguem contextualizá-las e avaliá-las corretamente, a partir de seus critérios e não de um critério preconcebido, que é uma referência natural qualquer. Isso é critério de leigo, que admira imitações: artista para ele é o hiperrealista que consegue desenhar um rosto exatamente igual ao do espelho, quase fotográfico. Mas isso é como um leigo em basquete achar que um globetrotter é muito mais atleta do que Michael Jordan.

Essa é uma parte da questão. Pois, além daquela pintura baseada na estrutura (o Cubismo), existe uma pintura baseada na imagem: o Surrealismo e a Metafísica Italiana são os melhores exemplos dessa vertente. O que têm em comum com a vertente formalista é que também não são narrativas nem se interessam mais em reproduzir a natureza. O que têm de diferente é que, de forma mais intencional, projetam no plano conteúdos do inconsciente. Logo, se o Cubismo é o tronco comum de uma série de correntes baseadas na consciência, Surrealismo e Metafísica investigam o polo oposto. Estão por isso ligados à tradição simbolista e expressionista, de caráter volitivo e não racional. São subjetivistas. Basta comparar Picasso, Robert Delaunay, Malevich e Mondrian, de um lado, com Joan Miró, Marc Chagal, René Magrite e Giorgio de Chirico, de outro, para enxergar as diferenças entre uns e as similaridades entre outros. O observador estará por fim selecionando, entendendo as diferenças da pintura enquanto estrutura racional, de um lado, e da pintura enquanto conteúdo irracional, do outro. Já é um bom começo para compreender que a pintura não é sem sentido, mas espelho do homem, ser oscilante entre a razão e a loucura.