Você pode ser pequeno, mas…

Você pode ser pequeno, mas…

Existe uma ideia amplamente partilhada de que o ser humano é insignificante diante do Universo. Essa ideia, sustentada pela filosofia moderna em oposição ao geocentrismo ptolomaico, certamente foi reforçada por Carl Sagan, que nos definiu como “poeira das estrelas”. Tal conceito é um convite à humildade, mas talvez em nada disso estivesse realmente pensando Carl Sagan. Pelo menos é lícito considerar que a frase do astrônomo tem intenção científica e não filosófica, e nesse sentido ela seria isenta de tragicidade. Pois é só uma constatação. A consequência desalentadora seria obra da filosofia, que ignorou nossa composição química — de fato, derivamos das estrelas — privilegiando a escala física. E esta seria, então, “insignificante”.

Na verdade, nosso tamanho é relativo, pois depende do referencial: somos exponencialmente colossais diante das escalas quânticas, que se projetam aquém da nossa. Parece que a menor medida conhecida é o comprimento de Planck, uma unidade tão inconcebível para a compreensão humana quanto a escala diametralmente oposta do Universo conhecido, concebível apenas em gigaparsec’s. Teoricamente, o comprimento de Planck corresponde a 0,00000000001 yoctômetros. Para se ter uma vaga ideia do que isso representa, a menor partícula de matéria conhecida — o neutrino — possui 0,1 yoctômetro. O neutrino, por sua vez, é quase infinitamente menor do que um próton, visto que a massa do próton é 100 milhões de vezes maior do que o neutrino (abaixo do qual todo comprimento é apenas teorizável). As escalas crescentes em relação ao yoctômetro são, pois, o zeptômetro, o attômetro, o femtômetro (escala dos prótons e nêutrons), o picômetro (escala do menor átomo, o de hidrogênio), o ângström, o nanômetro (escala do DNA e da entrada do transístor, ainda invisíveis aos microscópios óticos), o micrômetro, o milímetro (que comporta desde nossos cromossomos até a espessura de um fio de cabelo), e por fim o metro, que mede o tamanho de um ser humano.

Isso dá uma ideia aproximada de nossa grandeza em relação que que está aquém de nós: inegavelmente somos um universo altamente organizado, cheio de energia e povoado de vida. O menor ser vivo conhecido é uma bactéria, a Chlamydia, equivalente a 0,2 micrômetro, ou a milionésima parte de um metro ou, ainda, 1,7 milhão de vezes menor do que o seu hospedeiro humano médio. Como uma infinidade de outros microrganismos, a Chlamydia habita o nosso corpo. Evidentemente, não se pode comparar o homem a um neutrino nem a uma bactéria: somos muitíssimos mais complexos do que eles. Assim, nossa escala nos engana diante das medidas que estão além da nossa, até o limite atualmente concebível. Nesse ponto de chegada, a própria ideia de sermos poeira cósmica é pura generosidade. Seria mais apropriado dizer que nosso Sol é um grão de poeira no Sistema Solar, aqui usado como ponto de partida para as escalas realmente grandes do Universo.

Partindo da Terra, tomamos como referências, em sequência, o Sistema Solar, a Via Láctea, o Aglomerado Local, o Superaglomerado de Laniakea e, por fim, a chamada “teia cósmica” (curiosamente, muito semelhante a uma rede neural humana). Numa escala aproximada, se o Sol fosse uma bola de uns 50cm, a Terra seria uma pequena bolinha de gude a 100m de distância dele, e Plutão — que foi considerado o planeta mais distante do Sistema Solar —, com menos de um décimo de nosso tamanho, estaria a uma distância de 3,9km daquela primeira bolinha de gude, a Terra. A distância da Terra ao Sol é igual a uma Unidade Astronômica (UA), e o comprimento de nosso sistema planetário equivale a 40 dessas unidades. O Sol é algo aproximado a um ponto de caneta, se reduzirmos o Sistema Solar a apenas dois metros, que é a altura de uma porta. Daí ser ele uma poeira dentro apenas da própria área de influência, a heliosfera. Atravessando o espaço sideral a uma velocidade de 61 mil km/h, a sonda Voyager 1 só conseguiu alcançar os limites do Sistema Solar depois de 27 anos, em 2004, tendo já ultrapassando incríveis 22 bilhões de quilômetros de nosso planeta, no espaço interestelar. Ou seja, quase nada.

A unidade de medida mais aplicável a partir de certas distâncias é a velocidade da luz, que alcança 300 mil quilômetros por segundo. 1 ano-luz é igual a 9,4 trilhões de quilômetros. Pois bem: apenas a Via Láctea possui um diâmetro de 105 mil anos luz. Mas isso também é quase nada, porque já conseguimos estimativas de milhões e até de bilhões de anos-luz, em relação à Terra. Da Via Láctea à galáxia de Andrômeda, nossa “vizinha” mais próxima, a distância é de 2,5 milhões de anos-luz, por exemplo. Esse aumento gradativo nos leva do Sistema Solar ao interior do chamado Aglomerado Local de galáxias, descrito por Edwin Hubble, em 1936. No interior deste primeiro aglomerado, onde a Via Láctea figura como um ponto brilhante, há pelo menos 50 galáxias, perfazendo 10 milhões de anos-luz de diâmetro. A questão é que há no Universo inúmeros aglomerados, tornando ainda irrelevante nosso percurso, no espaço profundo. Calcula-se que o Superaglomerado de Laniakea, onde se situa a Via Láctea, abrigue 100 mil galáxias e possua 520 milhões de anos-luz. Isso já é alguma coisa. Existe até uma projeção em 3D de Laniakea (“céu imensurável”, em havaiano), esforço coordenado pelo astrônomo Richard Brent Tully, cujo resultado é impressionante. No interior de Laniakea os conjuntos galácticos se parecem com tênues nuvens de fuligem, em suspensão. O Sol nem sequer é poeira, a rigor.

Além dessa superestrutura, porção ainda pequena do Universo (cerca de 80 vezes menor do que o total conhecido pelos astrônomos), existe outro mapa mais completo, porém, muitíssimo mais antigo do horizonte observável. Trata-se de uma ecografia registrada pela Agência Espacial Europeia que captou como era todo o Universo há 380 mil anos após o Big Bang, do qual distamos 13,7 bilhões de anos, no futuro. A imagem em alta resolução foi obtida através da radiação cósmica de fundo, em micro-ondas, pelo satélite Planck. Conclusão: até aqui, o ser humano já conseguiu olhar para o céu, mapeá-lo à maneira das cartas náuticas dos antigos navegantes marítimos, e organizar um quebra-cabeças de 93 bilhões de anos-luz, que, por conta da inflação cósmica, é o diâmetro total do Universo conhecido. Feito absolutamente assombroso!

Portanto, é ponto de vista: o que impressiona em nós, seres humanos, é justamente o fato de uma criatura tão pequena, comparada a “poeira” mas bem menos que isso, conseguir realizar um feito tão desproporcional à sua própria escala. Em sua relação com a Natureza o homem conseguiu não apenas interagir com a menor partícula da matéria, o neutrino. Conseguiu também, no extremo oposto, compreender bastante bem o mecanismo Universo, desde sua origem, e abarcá-lo em sua mente: de certo modo, o Universo está dentro de nós. Durante séculos olhamos para o céu e conseguimos enxergar estruturas como a Grande Nuvem de Magalhães. Até uma iguana consegue fazer isso. Mas uma iguana não pode descobrir leis, construir técnicas, equipamentos tecnológicos, levantar hipóteses, comprová-las em laboratórios e estabelecer teorias bastante sólidas sobre a Nuvem de Magalhães e o firmamento. Que se saiba, somos o único ser a fazer isso, pelo menos numa zona significativamente abrangente do cosmo, visto que não contatamos outra civilização dentro ou fora deste limite. Pelo menos ninguém até agora respondeu à Voyager Golden Record nem à gravação de Chuck Berry.

O realmente incognoscível para nós, em termos de escala, não é mais aqueles 93 bilhões de anos-luz de diâmetro do Universo observável (essencialmente, a luz), mas o que se “estende” para além desse horizonte de fótons, sob um instransponível véu de obscuridade. Ninguém sabe ao certo o que há depois. Parece não ter lógica haver um limite, mas também não ter um limite não parece lógico, e a coisa começa a ficar bizarra a partir daqui. Além desse limite há um intervalo de 1,8 bilhão de anos-luz de comprimento, chamado Supervazio de Eridano, segundo o astrônomo István Szapudi, chefe de uma pesquisa relacionada, da Universidade do Havaí. Uma das hipóteses é de que Eridano seria um vácuo entre universos, infinitos, teorizados por físicos de peso como Erwin Schrödinger e Stephen Hawking. Nosso universo seria uma bolha de espaço-tempo em meio a outras bolhas (“multiversos”) estranhamente semelhantes, onde cópias nossas se replicariam também ao infinito. A ideia é fantasticamente borgeana e parece obra de um cérebro insano, porém é parte do que a matemática — a mais estética das ciências —prevê.

Em se tratando de seres humanos, a verdade é que ser pequeno é um dado pouco relevante: tomar cerveja, fazer sexo e ouvir a música preferida continuam sendo experiências inexcedivelmente gratificantes para a criatura que, afinal de contas, reconstituiu o Universo e ainda perscruta o que está além dele. Nada insignificante.

Deus poderia ficar impressionado conosco, justamente pelo fato de sermos tão pequenos e isso, a rigor, não ser um bom parâmetro para medir nossa capacidade, então. É bastante admissível que se a Natureza fosse consciente ela saberia de nossa existência, por conta da imensa bisbilhotice do homem, capaz de transcender em bilhões de anos-luz os modestos sinais de rádio que envia ao espaço. Não é assim absurda a sugestão de que nossa atividade poderia ser detectada pelo Todo, principalmente na hipótese de sermos solitários nessa imensidão. Fosse Deus esse Todo, talvez até se interessasse realmente por nós e nos dedicasse um livro. Assim, como nos interessamos apaixonadamente pelos neutrinos — que sequer são seres vivos — a ponto de também escrever sobre eles.