A Porta, de Magda Szabó: fascínio e culpa moldam personagem irresistível

Enquanto folheava o catálogo de clássicos esquecidos de uma pequena editora em Paris, o editor italiano Roberto Calasso (1941-2021) encontrou um nome do qual jamais se esqueceria. Ele começou a ler o romance “Rebeldes’’ e percebeu que estava diante daquelas descobertas raras, a grande sorte dos editores. Após 50 anos de vácuo editorial, o autor húngaro Sándor Márai foi colocado no seu devido lugar, ao lado de Joseph Roth, Musil, Thomas Mann e Kafka.

A chegada no Brasil do romance “A Porta’’ (Intrínseca, 256 páginas), da escritora húngara Magda Szabó também tem a luz de um grande acontecimento. Publicado em 1987, na Hungria, o livro só alcançou o lugar de destaque internacional após ser traduzido para o inglês em 2005 e entrar, dez anos depois, na lista dos Melhores Livros de 2015 do “The New York Times”.

“É surpreendente que esta obra prima tenha sido essencialmente desconhecida para os leitores de língua inglesa por tanto tempo. . . basta dizer que fui assombrado por este romance. Alterou a maneira como entendo minha própria vida. É um trabalho de estrita honestidade e delicada sutileza.’’ (Claire Messud para o “The New York Times”).

O livro autobiográfico narra a convivência entre duas mulheres tão diferentes que cria a tônica perfeita dos opostos. Magda, uma escritora renomada, volta ao ofício após alguns anos longe da máquina de escrever e decide contratar uma empregada para cuidar da casa. Após sondar alguns contatos no bairro, surge a indicação de uma mulher chamada Emerenc. De imediato, sabemos que estamos diante de uma personagem misteriosa, com uma autoridade natural que jamais pende para a arrogância. Seu corpo forte e musculoso sustenta um rosto que carrega uma suspeita indissolúvel.

A Porta, de Magda Szabó (Intrínseca, 256 páginas)

Emerenc impõe diversas condições para aceitar o emprego: é ela quem escolhe para quem vai trabalhar, o tipo de serviço que vai desempenhar, a forma de arrumar a casa, o que cozinhar. As relações de poder entre patroa e empregada ficam embaralhadas. Magda, um pouco contrariada, aceita os termos e à medida que elas vão convivendo, um muro de incomunicabilidade se ergue entre as duas.

Szabó revela aos poucos os pontos nevrálgicos de Emerenc. A narradora e o leitor participam juntos de uma excursão no escuro para entender as razões desta mulher que “era a única habitante de um reino só”.

Todos os vizinhos do bairro nutrem um respeito pela empregada, que embora seja uma mulher misteriosa com um passado sombrio, exala um senso de humanidade e generosidade “como se tivesse aprendido com a Bíblia que jamais segurou’’. Esse jogo de contradições aborta as possibilidades de um descobrimento real sobre o que está por trás do seu comportamento: Emerenc acaricia o mundo em volta, mas não permite a aproximação de ninguém no seu território.

A porta da sua casa está sempre trancada. Não se sabe o que há lá dentro — e esse mistério anuncia uma tragédia inevitável. Szabó cria uma imagem potente em que a porta, eternamente fechada, corresponde à personalidade impenetrável de Emerenc.

As diferenças entre patroa e empregada vão se avolumando. Magda é religiosa, burguesa, politizada e escritora. Enquanto Emerenc despreza qualquer trabalho intelectual, política e odeia a igreja por um motivo cômico que nos dá pistas sobre sua filosofia intransigente.

No auge da animosidade entre as duas, ocorre um fenômeno curioso: não se sabe mais quem é subordinada a quem. Emerenc, com sua soberania de ser e energia absorvente, convoca tudo o que está ao seu redor nessa pequena guerra doméstica.

O marido de Magda, personagem secundário, é um escritor que está se recuperando de uma doença e passa a maioria dos dias em repouso seguindo orientações médicas, entre elas, uma dieta restritiva. Emerenc se recusa a alimentá-lo apenas com frutas, o que causa um atrito inédito entre as mulheres:

“O patrão não vai viver por muito tempo, e isso a senhora sabe. A senhora pensa que ele se fortalece com ameixas? Não deixe o patrão partir nem com ameixas, nem com aquela dieta tola que a senhora dá a ele nem com esse seu hábito de correr para lá e para cá, ou, se está em casa, bate na máquina de escrever o tempo inteiro. Agora também, a senhora não está com ele. Está indo rezar. Se a senhora fizer ele rir bastante uma vez, vale um pai-nosso”.

Emerenc vai do cinismo para a doçura e depois para uma confissão íntima que agride a vaidade da narradora. Não se dobra, não volta atrás ou pede desculpa. Não é o tipo de mulher que trabalha com desperdícios. Seu temperamento indomável a coloca como umas das personagens mais fascinantes da literatura.

Esse temperamento esconde uma fragilidade que é revelada pouco a pouco. Traumas, abandonos, mortes e solidão são sombras do seu passado. Emerenc não conseguiu sair de um estado de ceticismo crônico ou reciclar o próprio lixo.