O filme da Netflix que tem 99% de avaliações positivas, e continua desconhecido

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O novelista russo Liev Tolstói (1828-1910) dá o pontapé inicial de “Anna Kariênina”, de 1877, um de seus melhores romances, especulando sobre o caráter muito próprio da infelicidade no seio familiar. Tolstói abre a narrativa afirmando que todas as famílias felizes se parecem, mas as infelizes têm cada qual uma forma própria de viver suas agruras.

“Anna Kariênina” é decerto a história de amor mais triste de todos os tempos. Não por acaso levada às telas cinco vezes, entre 1935 e 2012, o caso entre a protagonista, Anna Kariênina, mulher de Alieksiéi Kariênin, alto comissário do czar Alexandre II, com o Conde Vronsky, oficial da cavalaria, foi um escândalo junto à aristocracia da Rússia imperial. Anna pede o divórcio, mas Kariênin, além de não aquiescer, ainda a impede de ver o filho. Dramas dessa natureza, com esse teor de catástrofe, passariam ao largo do interesse do grande público na contemporaneidade nossa de cada dia em que tudo resta banal, aceitável ou, no mínimo, fruto do exercício da vontade individual de cada um pela busca de liberdade — em nome da qual continuam sendo cometidos os crimes mais abjetos —, conforme já advertira Madame Roland (1754-1793), figura central da Revolução Francesa (1789-1799), pouco antes de ser guilhotinada.

Bem como se dá com Anna e Kariênin, os Earnshaw de “O Morro dos Ventos Uivantes” também experimentam a desintegração de seu clã. Esses indivíduos são submetidos a tal processo de distanciamento à medida que cada um descobre verdades ocultas — providencialmente mantidas à salvo de qualquer análise — a respeito do outro que é impossível evitar a ruptura. Aqui, nem a força da biologia poderia ser invocada, já que Heathcliff, justamente o filho adotivo, é quem desencadeia os eventos mais infaustos da história ao se apaixonar por Catherine, sua irmã de criação, e, por essa razão ser justamente hostilizado por Hindley, o outro filho biológico do casal Earnshaw.

Pano rápido, e deixamos o século 19 rumo a 1982. Aos 18 anos, Alex Lewis, inconsequente como qualquer rapaz na sua idade, acaba sofrendo um acidente ao pilotar sua moto muitos quilômetros por hora além do permitido por lei. Constata-se um traumatismo craniano e, ao passo que se recupera, a equipe que o acompanha verifica que Alex não recupera as lembranças acerca de nada quanto vivera até o momento da queda. Estaria condenado a passar o resto de seus dias digressionando sobre a forma como se lhe apresentara a vida, mas tal possibilidade lhe é tirada de perspectiva graças ao irmão, Marcus, que passa a lhe servir de guia biográfico a caminho de sua própria trajetória.

Muito se tem publicado acerca da relação entre irmãos gêmeos, mas em verdade ainda pouco se conhece efetivamente sobre como reagem dois corpos biologicamente idênticos — porque gerados a partir de uma única fecundação, mas completamente autônomos um do outro — frente a situações as mais diversas (e adversas). É frequente o relato de gêmeos quanto a sentirem os dois as mesmas dores quando apenas um se fere, terem o mesmo sonho e ainda desenvolverem igual modo de vivenciar a sexualidade, expressão máxima do ser indivíduo. A fim de proteger o irmão de revelações desapontadoras — e traumatizantes —, Marcus começa a inventar uma realidade paralela, uma narrativa irreal, uma vida que não aconteceu, a fim de preservá-lo, escapando também, inconscientemente, da sua própria ruína anímica.

Tudo correria bem e a farsa jamais seria descoberta, não fosse Alex, aos poucos, se deparar com indícios de que algo ali estava errado. Ao contrário do doente que padece de uma enfermidade grave que termina por matá-lo e, tomado pelo desespero, começa a negar a doença pensando que esse comportamento teria o condão de salvá-lo, Alex admite a veracidade das informações que consegue a respeito de seu passado, se debruça sobre elas e, destarte, a trama ingressa no seu segundo ato, o mais dramático, o mais pungente. O gêmeo sem memória não entende o gesto do irmão como um ato de comiseração, mas sim à luz de um golpe desleal, que só se prestaria a adiar o que, de uma forma ou de outra, seria desvendado.

Curiosamente, Alex e Marcus nunca haviam conversado sobre o episódio, e o fazem pela primeira vez diante das câmeras de Ed Perkins em “Diga Quem Sou”, que apresenta a história dos gêmeos sob a forma de uma narrativa documental ágil, envolvente, que não se precipita em amarrar nenhuma ponta do enredo antes da hora e deixa que o espectador teça toda a sorte de elucubrações quanto ao que teria acontecido com seu protagonista. Perkins, diretor de “Ovelha Negra” (2018), sobre um adolescente negro que se muda para Londres com a família e passa a ser perseguido por uma gangue racista, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em Curta-metragem em 2019, elimina as derradeiras lacunas da história valendo-se do recurso de posicionar os irmãos frente a frente, como se se tratasse mesmo de uma acareação, à moda policial. Marcus admite que vinha mentindo sobre o passado de Alex, exatamente por ele próprio não suportar a dureza da verdade que a história dos dois encerra — que restava inédita e não fora sequer insinuada no livro homônimo que escreveram a quatro mãos em 2013.    

Talvez por reconsiderar e chegar à conclusão de que sua compaixão passara a fazer mais mal que bem, Marcus não se dirige ao irmão diretamente, mas lhe apresenta uma fita, por meio da qual conta os detalhes mais escandalosos da vida dos dois. Nesse ponto, a trama adquire um tom confessadamente farsesco, artificial, dada a natureza do discurso já ter sido pensada à exaustão. Os irmãos concederam inúmeras entrevistas conforme seu caso ganhava os holofotes, o que certamente lhes proporcionou a armadura necessária a fim de tocar no assunto sem abrir todas as chagas outra vez. Ed Perkins emprega a técnica da superposição de imagens turvas sobre a narração a fim de emprestar ao clímax do roteiro a atmosfera de tensão necessária e fundir os dois discursos, o de Marcus e o verídico. O expediente chega à tal sofisticação que, inclusive, são usados cenários na intenção de mostrar a mansão dos Lewis como uma espécie de casa mal-assombrada dos contos infantis, o que reforça a aura do conto de fadas (ou de bruxas) que se tornara a vida dos gêmeos, que eram impedidos de transitar livremente pelo imóvel, uma vez que eram alojados num anexo da propriedade, só acessível por meio de uma chave distinta. A esse respeito, outra fantasia de Marcus que cai por terra é a constituição da família ela mesma: eles tinham outros dois meios-irmãos, fruto do primeiro casamento da mãe, e o homem a quem se refere como pai é, na verdade, padrasto deles.

A maior tragédia que pauta a desdita de Alex e Marcus Lewis se personifica mesmo na figura da mãe, a grande responsável pelo desequilíbrio de Alex e, em se esticando um pouco a corda, a culpada por seu acidente na medida em que nunca fora capaz de lhe empenhar o amor que um filho busca na figura materna, no fundo tudo de que se precisa na vida — em especial quando ainda se é tão jovem. Em “Diga Quem Sou”, a mãe é, de fato, como simplificara Freud, a origem de todo o mal na vida de alguém.