O suspense hipnótico da Netflix que causa reações extremas

O suspense hipnótico da Netflix que causa reações extremas

A partir de suas fraquezas, o homem pode se tornar um herói. Ou, pelo menos, resistir. O terror no cinema tem se mostrado cada vez mais dinâmico, tomando por fundamento assuntos os mais amplos. Por paradoxal que seja, tem se observado nesse filão que quanto menor o orçamento, maiores as chances do resultado se constituir num enredo criativo, cheio de reviravoltas originais que não brigam com a verossimilhança e uma conclusão que deixa um gosto de quero mais.

O uruguaio Fede Alvarez é mesmo o enfant terrible da indústria cinematográfica deste século 21. Alvarez já demonstrara total domínio de seu ofício no quase experimental — e ótimo — “Ataque de Pânico” (2009), curta sobre uma ofensiva extraterrestre em Montevidéu cujas estimativas de gastos não excederam US$500, e que garantiu ao então publicitário, à época com 30 anos, um contrato nababesco. Se com uma ninharia Alvarez era capaz de fazer miséria, o que poderia acontecer à concorrência se dispusesse de um caixa com muitos zeros à direita, equipe afiada e todos os recursos tecnológicos de que precisasse a fim de quebrar a banca de vez? Um sucesso ainda mais estrondoso do que o visto em “Ataque de Pânico”, e mantendo as finanças sob controle, o que parece ter se consolidado mesmo como uma marca do diretor — que bateu sem dificuldade blockbusters do calibre de “Esquadrão Suicida”, de David Ayer e “Star Trek – Sem Fronteiras”, dirigido pelo taiwanês-americano Justin Lin.

Ninguém percebe com a frequência que o tema mereceria quão menosprezados são os personagens com alguma sorte de deficiência, às vezes incluídos na trama meio a fórceps, para conferir momentos de respiro emocional fora do tom — o que, não raro, dá à narrativa uma aura de drama involuntário que mais constrange que emociona. Dizer que Hollywood não se preocupa com o problema da integração de deficientes em seus filmes decerto soaria apressado e falso. “Forrest Gump” (1994), dirigido por Robert Zemeckis, é, provavelmente, o filme que mais exalta as qualidades de um protagonista celebrizado não exatamente por seus dotes intelectuais — e que também apresenta uma limitação física, superada com folga numa circunstância específica. No caso de “O Homem nas Trevas”, o personagem central segue deficiente até o fim da história, e, ao contrário do mocinho da produção de 27 anos atrás, não tem nada de ingênuo.

No filme de Fede Alvarez, uma pequena gangue de três assaltantes — Rocky, Money e Alex —, dá trabalho à polícia graças à destreza com que realiza furtos a residências enquanto seus moradores saem em férias. Ao descobrir que um homem já entrado em anos, e cego, recebe uma vultosa herança por conta da morte da filha — e que guarda a bolada em sua casa —, eles vão para o tudo ou nada. O alvo, um veterano de guerra, tem grande experiência com armas e em combater inimigos, predicados que fazem desse aparentemente inofensivo velhinho uma verdadeira máquina de matar — e é nesse ponto que a narrativa cresce. Uma vez que têm o azar de invadir a casa dele, os bandidos se tornam completamente vulneráveis e quem passa a dar as cartas é o ameaçado, senhor absoluto de seu território. O espectador também cai, com gosto, na armadilha preparada por Alvarez, e se põe a conjecturar sobre quem é menos vil na história.

O cego, o homem nas trevas do título, tão desimportante parece até quase o meio da narrativa que nem sequer conta com um nome pelo qual possa ser conhecido — na sequência do longa, cuja estreia se deu em 13 de agosto de 2021, uma sugestiva sexta-feira 13, sabe-se que ele se chama Norman Nordstrom. Conforme já se enunciava logo que a trama começa a engrenar, Nordstrom se mostra literalmente duro na queda, já que não caíra entorpecido pela beberagem que Money lhe aplica. O velho consegue farejar todos os movimentos do trio, ajudado por uma fera também mestra em captar rastros de possíveis invasores, um rottweiler irretocavelmente adestrado para as filmagens. Embora o personagem central tenha êxito no princípio da caçada e seja capaz de abater Money de imediato, a perseguição continua até o último minuto do pouco menos de hora e meia de duração, com pausas escassas inversamente proporcionais aos conflitos dramáticos, que vão se sucedendo exponencialmente.

Muito menos um filme de terror que uma obra autoral, “O Homem nas Trevas” prima por fundir num mesmo todo o suspense e a violência das produções do gênero e o esmero por entregar um resultado que não se pode comparar com nada que já tenha sido levado às telas, considerada a força do desfecho. Mesmo Money, o grande vilão da história, antagonista típico — manipulador, inconsequente, ególatra, inábil quanto a desenvolver qualquer lastro de humanidade ou misericórdia para com quem tenta atacar —, recebe por parte do espectador tratamento mais permissivo, tão infinitamente mais nefasto Norman Nordstrom acaba por se revelar. À exceção de Alex, que parece entrar de gaiato nesse navio fantasma porque apaixonado por Rocky — envolvida, por sua vez, com Money, numa ciranda de amores malfadados à moda drummondiana —, o roteiro é um pequeno tratado acerca dos diferentes graus de psicopatia aptos a colher a alma humana, reunidos num cenário rigorosamente delimitado e escuro, muito escuro.

Surpreendente, pleno de reviravoltas, filme em que se torna impossível calcular o próximo lance, “O Homem nas Trevas” ainda pode se orgulhar de seu exíguo, mas bravo elenco, que à medida que apresenta performances diametralmente contrárias ao óbvio, sobe o nível desse thriller memorável, sem exagero um dos melhores do cinema. Apesar de tantas cenas indigestas — especialmente quando já se avizinha o encerramento, no porão, o último círculo do inferno de Dante Alighieri (1265-1321) relido por Fede Alvarez —, “O Homem nas Trevas” desce redondo. A direção de fotografia, impecável, destaca o claro-escuro (sempre mais para escuro) do ambiente, uma extensão da própria aura da história, fazendo do conjunto uma composição bastante harmoniosa.

As aparências podem mesmo enganar, como a falta de luz em “O Homem nas Trevas” deixa claro. Às vezes, a natureza humana só espera uma oportunidade para tirar o véu de suas sombras.