Bem-vindo ao deserto do Real

Bem-vindo ao deserto do Real

A cena emblemática do filme “Matrix” (1999) mostra o momento que o personagem Neo (feito por Keanu Reeves) é conectado a uma rede de computadores por meio de um plug em sua cabeça. De imediato, ele entra em um universo virtual onde Morpheus (Laurence Fishburne) tenta explicar o famoso mecanismo da “matrix”, o aparato que controla tudo e todos, porém é inclassificável.

Mais interessante: o exemplo que ele dá vem do aparelho vintage de televisão. Primeiro, Morpheus apresenta a Neo a imagem de carros na rua, prédios, de uma cidade como Nova York. Segundo ele, esse era o mundo de 1999. No agora do filme, eles estão quase 200 anos à frente no futuro, e as cenas da TV trazem um cenário escuro, enfumaçado, com raios que associamos ao apocalipse.

A sequência termina com a célebre frase de Morpheus para Neo: “Bem-vindo ao deserto do real!”. O real é a imagem de um mundo depois de um desastre. O futuro nada tem de luz, nada de ensolarado. Está parecido ao quadro “O Triunfo da Morte” (1562), de Pieter Bruegel, chamado de “o velho”, ou com a queda das torres gêmeas do World Trade Center, que ocorreria dois anos depois de “Matrix”.

O que é o “real” dos então irmãos Wachowski, diretores do filme (hoje são as trans Lilly e Lana)? Essa é uma das questões centrais, porque “Matrix” tem longas cenas para discutir o que é virtual ou não. No começo da história, Neo abre o exemplar do livro “Simulacros e Simulação”, do francês Jean Baudrillard, um dos maiores pensadores dos temas de hiper-realismo, consumo e virtualidades.

Mas o filósofo Slavoj Zizek vai para outro caminho e identificou o “real” dos/das Wachowski nos conceitos de Jacques Lacan. Foi o caminho elucidativo para “Matrix”. O psicanalista francês definiu os três registros que uma pessoa percebe e interage no mundo: o Real, o Simbólico e o Imaginário. É o trio RSI. Ponto importante: o Real não é o mesmo que realidade, sendo esta última uma interpretação humana.

Sonhos e pílulas

Os registros criados por Lacan foram bem traduzidos, didaticamente, por Leyla Perrone-Moisés. A crítica brasileira utilizou justamente o exemplo de uma televisão, assim como Morpheus: o Simbólico seria um documentário educativo (repleto de leis), o Imaginário se aproximaria da história de uma telenovela romântica com a qual nos identificamos e o Real apareceria nos filmes indescritíveis de terror.

Segundo Leyla, a vida seria, por fim, um zapping contínuo no controle remoto por esses três programas de televisão. Não tem como separar o trio RSI. O que Morpheus mostra para Neo, é que o mundo virou um filme aterrador. Coisa semelhante ao universo paralelo do monstro na série “Stranger Things” (2016), da Netflix, que seria o Real convivendo com o Imaginário nostálgico da cidade típica de um filme dos anos 1980.

Os sonhos e a famosa escolha entre as pílulas vermelha e azul são também questões boas trazidas por “Matrix”. Ao se conectar com os computadores, por exemplo, os personagens parecem dormir e mergulhar no universo onírico. Mas, ao voltar para o mundo, eles não sabem se ainda estão sonhando. O despertar deixou, assim, de ser uma metáfora para o esclarecimento, a suposta visão sem filtros da realidade.

Algo parecido ocorre em “Mulholland Drive” (2001), de David Lynch, que saiu no Brasil com o título-spoiler “Cidade dos Sonhos”. O filme tem duas partes: a primeira mostra a realização dos projetos de uma atriz em Los Angeles, e a segunda apresenta a mesma atriz em desgraça. Usando os termos acima, primeiro a personagem tem a experiência dos sonhos do Imaginário, e em seguida desperta para o pesadelo do Real.

Para superar esse estado de coisas, a dupla Wachowski oferece em “Matrix” a solução das pílulas vermelha e azul. Uma delas possibilita o acesso ao prazer, e a outra, ao Real traumático. Qual se deve preferir? As duas podem ser ilusórias ou verdadeiras, como o que se vê na tela. Porém, como sugeriu Lacan, a vida será sempre uma mistura inseparável de documentário educativo, novela das oito e filme de monstro.

E contra isso tudo, não há uma pílula milagrosa que resolva. O monstro Real do momento é o vírus da Covid que sufoca seus hospedeiros. A cura do mundo males não virá de um discurso populista, jurídico ou religioso que se vende como o novo Simbólico. Tampouco o Imaginário das redes sociais de internet vai ser a solução, com fake news e fotos em locais paradisíacos e felicidade instantânea.