Voz ativa: a música popular brasileira em quatro tempos

Voz ativa: a música popular brasileira em quatro tempos

Quem assiste à série “Coisa Mais Linda” (2019), da Netflix, tem uma ideia de como se formou o sistema da música popular brasileira. Com uma história de amor em primeiro plano, as duas temporadas recriam o ambiente em que surgiu a Bossa Nova no Rio de Janeiro, no final dos anos 1950. Na série, a personagem Malu comanda a boate onde se apresentam os músicos para um público de classe média carioca e sofisticado. Chico Carvalho representa o compositor e cantor que faz a ponte com os sambistas negros do morro. E Roberto é o dono da gravadora que move os negócios do novo som.

Sistema cultural envolve a relação entre artistas, suas obras e um público apreciador de manifestações artísticas, segundo bem definiu Antonio Candido. Quando esses elementos começam a interagir, pode-se considerar que amadureceu um sistema ou campo (como se diz atualmente). Olhando para o passado, é possível ver quatro sistemas musicais surgidos a partir da Bossa Nova — na linha do que se vê em “Coisa Mais Linda”. Não foram os únicos fenômenos desde então (haja vista, a música sertaneja), porém eles podem ser definidos como os mais valorizados socialmente e colocados no nível de arte.

Os quatro sistemas podem ser colocados em perspectiva histórica, em períodos que formam uma “estrutura de sentimento” de época. É um jeito de ver as coisas, o mundo e as pessoas que é captado pelas obras artísticas. A Bossa Nova descende do samba e é o auge da utopia modernista de 1922. A MPB dos anos 1960, por sua vez, assimilou a energia das transformações comportamentais e políticas. Vinte anos depois, esgotou-se a ideia da cultura “nacional-popular”, abrindo as portas para o rock brasileiro. E o quarto sistema trouxe o rap da periferia das metrópoles para o centro das atenções.

Bossa Nova

A ideia de Brasil moderno foi obra da classe média urbana, radicalizada e escolarizada. Sem dúvida, era uma minoria, mas que dava as cartas do jogo na cultura e na política. Já entrou para os livros de História uma noite de 1926 que juntou figuras como Heitor Villa Lobos, Sergio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque) e Gilberto Freyre para uma “noitada de violão” com os músicos Pixinguinha e Donga. Como aparece na série “Coisa Mais Linda”, o encontro de classes sociais representou o parto simbólico do samba como a música nacional e um dos mitos fundadores da identidade brasileira.

Em 1959, o baiano João Gilberto gravou o álbum “Chega de Saudade”, o marco fundador da Bossa Nova. Viu-se naquele momento que a música brasileira poderia — o que de fato ocorreu — transbordar para além das fronteiras do país. O cantor e violonista criou uma forma musical a partir de batuques da Bahia e do Rio de Janeiro. Em sua mistura, entrou de tudo um pouco, segundo Caetano Veloso no livro “Verdade Tropical”. João abriu caminho para os seus contemporâneos Tom Jobim, Carlos Lyra, Nara Leão e Baden Powell. Ainda deu sentido aos “imitadores” de música norte-americana que apareceram a partir dos anos 1940 (Dick Farney, Lucio Alves, Johhnny Alf e Os Cariocas).

Joao Gilberto
João Gilbertol Foto: Agência Brasil / Divulgação

Houve também um resgate do passado mais distante do samba por parte de João Gilberto. Caetano cita “o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente”. Estamos diante de um verdadeiro processo formativo da canção popular, na linha do que Machado de Assis realizou na literatura no século 19. A criação artística é um processo de acumulação cultural do que veio antes e do que está no presente (dentro e fora do país).

A Bossa Nova representou um passo para o futuro, uma utopia à brasileira, de acordo com a brilhante análise de Lorenzo Mammì. Um som produzido nos apartamentos da zona sul do Rio de Janeiro e que se tornou ideal de criatividade. Foi o sonho brasileiro de fazer algo sofisticado, porém popular e nada aristocrático. A voz de João era suave, dialogando com a batida do violão herdada do samba. Era cool de nascença. Quem ouve suas canções, sente-se flutuando em níveis superiores e faz acreditar na existência de espíritos — algo similar quando se lê Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa.

A experiência da Bossa Nova alimentou aquela concepção de país moderno, ao mesmo tempo que surgia o Cinema Novo e se construía a cidade de Brasília. Era o ideal de uma classe média pensante que estava em diálogo com o “povo”. O país enxerga um futuro brilhante. A relação entre as classes sociais vai ser também o horizonte para a geração seguinte dos anos 1960, já embebida do espírito do “romantismo revolucionário”, na acepção de Marcelo Ridenti. A MPB sessentista, incluindo suas famosas canções de protesto, será o passo adiante de um sistema formado na era clássica do LPs (long plays).

MPB

Nessa tentativa de periodizar a canção brasileira, a MPB assume o lugar de segundo sistema que se consolidou. A novidade estava no avanço da indústria da cultura que havia sido virada de cabeça para baixo, mundialmente, com os fenômenos de Elvis Presley e dos Beatles. Era a hora e a vez da juventude, com uma energia renovada. A figura que faz a síntese do período no Brasil é Chico Buarque. Nele, renova-se a tradição moderna do samba dos anos 1920 em diante. E as letras são um olhar para o presente da época quando havia palavras de ordem como utopia, resistência e revolução social.

Chico Buarque l Foto: A.PAES / Shutterstock

Em 1965, Chico Buarque lançou a música “Pedro Pedreiro”. A espera do personagem é pela revolução política: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem. Manhã parece, carece de esperar também. Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém. Pedro pedreiro fica assim pensando”.

O engajamento significava passar para o lado dos “homens simples”, como Pedro Pedreiro. É a visão do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e de todo o repertório crítico do teatro da época. O grande evento político foi o show “Opinião”, que juntou em dezembro de 1964 a nata dos músicos jovens (Nara Leão, Maria Bethânia) e dos sambistas do morro (Zé Keti). Mais uma vez o clima de confraternização de classes que também apareceu no filme “Quase Dois Irmãos” (2004), de Lucia Murat. Nesse caldo cultural e político, cristalizou-se a imagem pública de Chico Buarque.

A MPB ganhou um impulso inesperado da televisão e seus festivais. A “máquina de fazer doido, como Stanislaw Ponte Preta chamava na época a TV, apresentou a um público nacional os jovens músicos, incluindo os novíssimos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, e gente em fase de consolidação como Elis Regina. A canção de protesto de Geraldo Vandré foi marca do tempo e imagem recorrente em qualquer documentário do período. Mas, com aumento da politização dos jovens, houve uma reação conservadora em nível global contra as manifestações de maio de 1968.

O fato é que a MPB dos anos 1960 consolidou a canção brasileira, ao ponto de ser ainda referência central quase 60 anos depois. À valorização daquela estética, correspondeu um esvaziamento de público. Os músicos da MPB amadureceram ao longo dos anos 1970 e tornaram-se alta cultura. Povo, classes populares ou classes médias baixas partiram para outros sons, o que possibilitou o nascimento do que seria a música sertaneja nas décadas seguintes. Essa transformação foi bem documentada e analisada por Gustavo Alonso, no livro “Cowboys do Asfalto”. Chico Buarque não cantava mais para o povo. 

Rock

A década de 1980 marcou o fim da ideia de “nacional-popular” na cultura brasileira. Uma forma de ver o país que se esgotou, seguindo os últimos suspiros do desenvolvimentismo que teve auge na cultura com a Bossa Nova. O que passou a tomar espaço no imaginário político, foi a globalização da economia. Hoje, em 2021, é possível ver com clareza que o projeto modernista de 22 e o “romantismo revolucionário” não tinham mais inovação ou contribuição a dar. A MPB vivia o amadurecimento dos medalhões (Chico, Caetano, Gil, Milton Nascimento), sem novidades de impacto a oferecer.

Foi nesse ambiente que, em 1982, explode o fenômeno do rock nacional. Os jovens da época não bebiam mais na fonte da tradição do samba. O estímulo criativo vinha da new wave de Nova York e do pós-punk de Londres. A linguagem musical do novo rock brasileiro tinha origem nas guitarras distorcidas e na eletrônica, de matriz inglesa e norte-americana. Se houve encontro de classes sociais, ele ocorreu entre os estudantes brancos da Universidade de São Paulo (USP) e os punks negros da periferia, conforme aparece no belíssimo livro “Meninos em Fúria: E o Som que Mudou a Música Para Sempre”, de Marcelo Rubens Paiva e Clemente Tadeu Nascimento (líder dos Inocentes).

Renato Russol Foto: Agência Senado / Divulgação

A voz central daquela geração foi Renato Russo, do grupo Legião Urbana. Ele fez a síntese do terceiro sistema musical que tinha a novidade dos grandes festivais para públicos de 100 mil pessoas, como o Rock in Rio. Na época, os grupos eram formados por uma classe média dita esclarecida e sem ligações com as lutas políticas da década de 1960. Porém foi a juventude que viveu a transição do regime militar para os governos civis, tendo o ponto culminante na campanha da Diretas Já. A gramática desses jovens era o inconformismo, um tanto difuso, porém a energia criativa gerava música de alta potência e capacidade de mobilização.

Renato Russo surgiu em Brasília e tornou-se nacionalmente conhecido com o primeiro disco lançado em 1985. As canções faziam acertos de contas com o passado recente (“Soldados”, “Baader Meinhof Blues”, “Petróleo do Futuro”) e apontava para a esperança do que está por vir na música de abertura “Será”: “Será só imaginação. Será que nada vai acontecer. Será que é tudo isso em vão. Será que vamos conseguir vencer”. 

Havia também manifestos como “Geração Coca Cola”, na qual se percebem até ecos da antropofagia de Oswald de Andrade e do Estética da Fome de Glauber Rocha. Mas a lógica nova era internacionalista: “Desde pequenos nós comemos lixo. Comercial e industrial. Mas agora chegou nossa vez. Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Somos os filhos da revolução. Somos burgueses sem religião. Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola”.

A classe média era um segmento de ateus, os “burgueses sem religião”, já conectados e dispostos a deglutir os movimentos da globalização. Jovens que iam aprender as regras do jogo, para dar uma resposta cultural aos gringos. Renato Russo tinha afinidades com Joy Division, The Smiths e Bob Dylan. A herança do nacional-popular vai aparecer na canção “Faroeste Caboclo”, escrita no começo dos anos 1980 e lançada comercialmente em 1987. Nela, o cantor da Legião Urbana imagina a história completa do migrante nordestino que se muda para Brasília e mergulha no caos nascente das periferias urbanas. Caos que será cantado e revelado pelo rap nacional a partir da década de 1990.

A indagação lançada em “Será” vai ser respondida finalmente na letra de “Perfeição”, de 1993. Renato Russo era portador do vírus HIV, o que o levaria à morte em 1996. A música termina com uma citação de “O Bêbado e a Equilibrista” (1979), de Aldir Blanc e João Bosco, que falava da “esperança equilibrista” em relação ao que viria na abertura política do país. Porém, o clássico da MPB na voz de Elis Regina não está literalmente no rock atravessado da Legião Urbana. A linha melódica é a mesma. Renato vai dizer que, naquele momento, a “esperança está dispersa”:  “Venha, meu coração está com pressa. Quando a esperança está dispersa. Só a verdade me liberta. Chega de maldade e ilusão. Venha, o amor tem sempre a porta aberta. E vem chegando a primavera. Nosso futuro recomeça. Venha, que o que vem é perfeição”.

Renato Russo estava na fase de não acreditar tanto em futuro, pois, como cantou Cazuza, via “a cara da morte e ela estava viva”. Os dois músicos e o escritor Caio Fernando Abreu acabaram vitimados pela AIDS. Tiveram vida breve, ficando pouco tempo no debate público. O tempo presente dos 1990 não sugeria esperança, estando mais para dispersão e falta de horizontes. O rock brasileiro se consolidou e estava pronto para assimilar a influência da canção popular brasileira, como fizeram grupos como Raimundos e Chico Science & Nação Zumbi. É nesse período que a periferia começa a pegar fogo.

Rap

Nos primeiros anos de Chico Buarque, era a classe média que bebia nas fontes populares, principalmente o samba, para elaborar canções. A realidade dos anos 1990, no entanto, dispensou as pontes de classe. A própria periferia poderia soltar a voz ativa e chegar ao público em geral, sem intermediários — isso vale também para sertanejos do interior de São Paulo ou dos estados do Centro-Oeste. Da periferia das grandes cidades, explodiu a cultura do rap ligada ao universo black dos Estados Unidos: o funk, o hip hop e a religião protestante. Nesse contexto, nasceram os Racionais MCs e seu líder Mano Brown.

Os negros pobres no Brasil deixaram de lado os rituais afros (candomblé, umbanda) para aderir às igrejas evangélicas nos últimos 30 anos. Os Racionais vão mostrar os novos sentimentos e olhares da periferia da cidade de São Paulo. O ponto alto deles foi o disco “Sobrevivendo no Inferno” (1997). Acauam Silvério chamou acertadamente o trabalho de Mano Brown e seus parceiros de “evangelho marginal”. O disco de 1997 se estrutura como culto evangélico: o cântico de louvor na abertura, o evangelho na canção “Gênesis”, os testemunhos (“Rapaz comum” e “Diário de um detento”), a mensagem central e o agradecimento final (“Salve”).

Quem assiste à série “Coisa Mais Linda” (2019), da Netflix, tem uma ideia de como se formou o sistema da música popular brasileira. Com uma história de amor em primeiro plano, as duas temporadas recriam o ambiente em que surgiu a Bossa Nova no Rio de Janeiro, no final dos anos 1950. Na série, a personagem Malu comanda a boate onde se apresentam os músicos para um público de classe média carioca e sofisticado.
Mano Brown / Divulgação

A forma de “Sobrevivendo no inferno” incorpora elementos culturais e sociais da vida na periferia brasileira contemporânea, criando um sistema novo para circulação da música. O disco fala diretamente ao coração dos jovens negros e pobres da grande cidade. Esse mesmo jovem acredita que não precisa mais de um sujeito de classe média para traduzir o que ele pensa. O imaginário da periferia tem pastores evangélicos, policiais violentos, o trabalho precário trazido com a globalização da economia e a passagem de amigos e parentes por presídios. A explosão da violência é cantada assim em verso e prosa que incorpora todos esses elementos: “Agradeço a Deus e aos Orixás, parei no meio do caminho e nem olhei pra trás meus outros manos todos foram longe demais, Cemitério São Luis, aqui jaz. Mas que merda, meu oitão tá até a boca, que vida louca! por que é que tem que ser assim? Ontem eu sonhei que um fulano aproximou de mim, ‘agora eu quero ver ladrão, pá! pá! pá! pá!’, Fim. É… sonho é sonho, deixa quieto. Sexto sentido é um dom, eu tô esperto, morrer é um fator, mas conforme for, tem no bolso e na agulha e mais 5 no tambor. Joga o jogo, vamo lá, caiu a 8 eu mato a par. Eu não preciso de muito pra sentir-me capaz de encontrar a Fórmula Mágica da Paz”.

Vendo o movimento do rap, Chico Buarque disse que a Era da Canção Popular estava encerrada. Sua geração não tinha mais o que dizer ou cantar. “Como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum’n’bass”, disse, numa entrevista de 2004.

Mais adiante na conversa, Chico arrematou com uma ponta de melancolia e esperança: “Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não”. A voz ativa vai mudando de lugar nos quatros sistema da música popular brasileira.