Notas sobre catástrofes e banalidades

Notas sobre catástrofes e banalidades

Um grande acontecimento ou tragédia demora para ser plenamente entendido. Mesmo as melhores cabeças de uma época podem ignorar um evento que, no futuro, se revela crucial. No dia 2 de agosto de 1914, Franz Kafka registrou em seus diários: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. — À tarde, natação”. Dias antes começara a Primeira Guerra Mundial, que mudaria em definitivo os rumos da Europa e do mundo. O escritor soube da questão política pelos jornais e, em seguida, deixou marcado no diário sua rotina mais banal e corriqueira (uma atividade física).

Kafka possivelmente não imaginou a repercussão daquela notícia. Tampouco pensou no efeito futuro de sua própria obra. Para ele, seus escritos careciam de importância, a ponto de pedir ao amigo Max Brod para queimar as anotações depois de sua morte. Morreu sem saber o quanto os escritos, vistos como ordinários, revelavam o funcionamento do mundo e da Europa nos anos de carnificina. Com o tempo, chegou ao ponto de virar adjetivo e fetiche dos mais conhecidos do século 20: “kafkiano”, dizemos quando o absurdo ocorre.

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Diários eram prática de um tempo em que os ponteiros do relógio pareciam girar de forma lenta. Isso até que a guerra sacudisse a Europa, num dos maiores pesadelos da História. Virginia Woolf mantinha cadernos para anotar ocorrências da vida — ao todo, preencheu 33 volumes no período de 44 anos. Após sua morte, o marido Leonard editou aqueles escritos de forma escrupulosa, por medo e pudor de expor os amigos. O resultado são cinco livros, que trazem os diários de 1915 a 1941, quando morreu Virginia. Começou a sair agora no Brasil a tradução na íntegra do material.

O primeiro livro dos diários traz a vida conturbada da escritora de 1915 a 1918. Virginia registrou com atenção os acontecimentos da guerra, porém se fixou também nas pequenas coisas cotidianas e nos rabiscos para romances e ensaios. A Europa ardia nas trincheiras, e ela mostrava as trivialidades de qualquer pessoa. Num dos trechos, a autora conta a ida ao bosque para colher cogumelos, aliviando assim o racionamento de comida por conta dos combates. Havia pequenos prazeres em meio à sensação de viver próxima do inferno da guerra que mudaria o mundo em definitivo.

Em 1927, Virginia publicou o romance “Ao Farol”, um misto da banalidade diária com os grandes temas. A personagem da sra. Ramsey tece uma meia marrom, enquanto recebe amigos numa casa de praia. Um dos filhos dela pede para ir, com os adultos, ao farol próximo. Tem-se apenas um dia na vida em 1909 ou 1910, e nada aparentemente acontece. A escritora tratou do mundo inteiro naquele ambiente e transfigurou no livro suas histórias pessoais, sobretudo a imagem do pai (encarnado no sr. Ramsey, professor de filosofia). Corta-se o tempo, e o leitor vê a casa de praia dez anos depois, desfigurada pelo abandono na guerra e pelas perdas de pessoas da família.

O trauma da Primeira Guerra havia aparecido de forma de explícita no romance “Mrs. Dalloway” em 1925. Nele, Virginia criou dois personagens impressionantes, ao longo de apenas um dia em Londres. Eles não são encontram em momento algum. De um lado, está Clarissa Dalloway, que organiza um de seus conhecidos jantares e percorre a cidade atrás de itens como flores. À banalidade da senhora, contrapõe-se a história do ex-soldado Septimus Warren Smith, com seus devaneios suicidas. O choque para Clarissa será ouvir a história daquele homem durante o jantar.

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Septimus é uma figura que existiu aos montes na guerra e chamou a atenção de pensadores depois de 1918. O corpo voltava de alguma forma para casa (vivo, morto ou mutilado), porém a alma havia sido destroçada no campo de batalha. Ao conhecer veteranos dos combates, Freud ficou alarmado com o silêncio deles, afinal não conseguiam relatar o que tinham vivido. Eles estavam mudos, incapazes de elaborar os acontecimentos. Walter Benjamin, por sua vez, notou que os combatentes retornavam mais pobres de experiência, sem proezas ou feitos heroicos para contar a quem ficou em casa. Morreu a épica.

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O fim da guerra representou uma mudança radical na vida dos europeus. Nada voltou a ser como antes, e o pior era o empobrecimento generalizado de quem tinha uma vida boa, nos anos anteriores a 1914. O então estudante Claude Lévi-Strauss viu a ruína financeira e social da família, segundo conta Emmanuelle Loyer na extraordinária biografia do antropólogo: “A inflação campeia no pós-guerra; o estancamento monetário da dívida pública provocada pelo conflito provoca, em toda a Europa, em especial na França (menos, contudo, que na Alemanha), uma reviravolta nas hierarquias econômicas e sociais do pós-guerra. Riquezas desmoronam; jovens tubarões fazem fortuna”.

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Poucas pessoas deixaram um registro tão expressivo dos danos do Primeira Guerra como o médico Louis-Ferdinand Destouches, que iria se tornar mundialmente conhecido como o escritor Céline. Ele tinha 18 anos de idade quando eclodiu o conflito e fazia o serviço militar na região francesa da Lorena. Saiu do front ferido gravemente por uma bala no braço direito, além das sequelas de insônia, perda de audição causada pelas granadas e enxaquecas. Disso tudo, resultou seu primeiro romance “Viagem ao Fim da Noite” (1932), com o personagem Ferdinand Bardamu.

A experiência traumática atravessou a obra de Céline, que jamais se recuperou do que viu em 1914. O escritor mergulhou nos abismos da alma nas décadas seguintes e foi tragado pelo antissemitismo francês, um dos traços das classes populares e dos ricos em seu país. Escreveu panfletos inacreditáveis para atacar os judeus e acabou perseguido pelo resto da vida. Sua obra é extremamente rica e interessante por mostrar como um autor se afunda no pior do ser humano para extrair sua obra. Morreu banido e quase esquecido na periferia de Paris, como símbolo da vergonha nacional.

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Leva tempo para entender o que se passa em eventos como a Primeira Guerra Mundial. No calor da hora, o sentimento é de choque e silêncio. A elaboração, a reflexão, só vem anos depois. Uma das melhores obras sobre o trauma de 1914 é o filme “Glória Feita de Sangue”, de Stanley Kubrick. Lançado em 1957, mostra o absurdo de um grupo de três soldados no campo de batalha. Eles se recusam a ir para uma ação com morte certa e acabam, kafkianamente, processados num tribunal. Passados tantos anos, já era possível decifrar e narrar aquele desatino que engoliu um continente inteiro.

O século 20 dos europeus tornou-se conhecido como a Era das Catástrofes, de acordo com a definição do historiador inglês Eric Hobsbawm. Para muitos, foi um enigma a forma como o “berço da civilização” tornou-se espaço da mais pura barbárie. Ficou claro que todo processo civilizatório carrega em si a lógica da brutalidade. A diferença é que as duas grandes guerras (a de 1914 e a de 1939) não ocorreram, como de praxe, em territórios longínquos da África, da Ásia ou das Américas. Os europeus conheceram assim, na própria pele, o que era viver numa colônia de antigamente.

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O italiano Primo Levi foi um dos melhores escritores a enfrentar o desfaio de narrar a catástrofe europeia. Como sobrevivente de campo de concentração, escreveu os livros “É Isto um Homem?” (1947) e “A Trégua” (1963). Na caminhada de volta para casa, Levi encontrou um menino de uns três anos de idade e que não falava uma língua sequer. Foi batizado de “Hurbinek” (único som inteligível que emitia). O autor viu na criança muda a maior testemunha do que houve na guerra, mas que jamais contaria sua história. De uma maneira ou outra, a vítima e o escritor se defrontam com o silêncio.

Em 20 de julho de 1960, segundo seus registros, Primo Levi escreveu um poema singular a respeito de uma notícia daqueles dias. Havia sido preso na Argentina o oficial nazista Adolf Eichmann. O serviço secreto de Israel o capturara para fazer um julgamento — na verdade, seria um acerto de contas. A filósofa Hannah Arendt acompanhou de perto o processo contra Eichmann e concluiu, para indignação de todos, que aquele homem não tinha culpa pelos crimes cometidos. Tratava-se, segundo ela, de alguém que havia parado de pensar e praticava a “banalidade do mal”.

O poema de Levi termina não com o desejo de um ajuste olho por olho, dente por dente. O vaticínio é para que Eichmann sobreviva. A punição seria continuar vivo:

Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte.
Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu:
Que viva insone cinco milhões de noites,
E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu
Encerrar-se a porta que barrou o caminho da volta,
O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte

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As grandes guerras europeias revelaram dois traços profundos do século 20: o silêncio causado pelo trauma e a essência banal da violência (o genocídio). A arte contemporânea, desde então, passou a ter o desafio de apreender a experiência brutal: as peças teatrais de Samuel Beckett, as artes plásticas de Anselm Kiefer, os quadrinhos de Art Spiegelman, os romances de Thomas Bernhard e as narrativas de W.G Sebald. Trata-se de um choque que o artista tem ao encontrar o real, aquilo que não pode ser traduzido imediatamente em palavras ou imagens. Disso surge a manifestação artística.