Não é a mentalidade de Borba Gato que interessa: é a sua

Não é a mentalidade de Borba Gato que interessa: é a sua

Que símbolos têm poder ninguém discute. Dito isso: faz sentido queimar estátuas como a do bandeirante Borba Gato? Essa talvez tenha sido a pergunta essencial do debate sobre o fato ocorrido em julho deste ano, em São Paulo, mas que reflete um estado de ânimo atual em várias partes do mundo. O paulista Manuel de Borba Gato (1649-1718) foi desbravador do sertão mineiro, acusado de “genocídio” por haver perseguido e escravizado índios entre os séculos 17 e 18, objetivo comum dos sertanistas. Historiadores dizem essa acusação de genocídio não procede porque é anacrônica: julga o passado segundo os critérios do presente.

Não é tão simples assim por mais de uma razão. Entender se faz ou não sentido coloca-nos diante de outros problemas, além do anacronismo: os conceitos de História e de violência. Começando pelo anacronismo, sem dúvida que as ideias de Direitos Humanos e de genocídio não existiam nem na sociedade colonial brasileira nem nos séculos 17 e 18. São conquistas de meados do século 20. Não faziam sentido, portanto, para o bandeirante nem para a coroa portuguesa. Mas há dois problemas nesse argumento: primeiro, resumir o debate à questão técnica, de Direito (se não era ilegal era legítimo perseguir, escravizar e até matar os nativos). Segundo problema, esquecer que o monumento a Borba Gato não foi erguido no século18, mas em 1963, ou seja: quando aquela compreensão de genocídio e de Direitos Humanos já estavam amplamente estabelecidas.

E daí entra em questão o conceito de História, enquanto ciência. Todo historiador aprende no curso regular que a historiografia é tão pragmática quanto a Engenharia: ela existe em função do presente e não do passado. É óbvio que a estátua de Borba Gato reflete a mentalidade de seus idealizadores: concordariam, em 1963, com o violento papel exercido pelo sertanista no século 18? Do mesmo modo, o ato de queimar sua estátua reflete a percepção de mundo dos responsáveis pelo incêndio: eles são contra, em 2021, o simbolismo implícito daquela homenagem. Logo, o que interessa nesse evento piromaníaco não é a mentalidade do bandeirante. É, pelo contrário, se essas duas visões de mundo estão de acordo ou não com a realidade presente, quando a ideia de Direitos Humanos já fora integrada às conquistas de nossa civilização. Essa é a única questão que diz respeito a quem vive aqui e agora.

E então chegamos ao terceiro conceito, de violência: também é relativo à época, por incrível que pareça, embora isso não desfaça a dor e o sofrimento. Sendo então rigorosamente diacrônicos (conceito que os historiadores exigem), conseguimos, com os olhos do século 18, justificar a queima de uma pessoa na fogueira. Mas é possível aceitar a mesma justificativa com os olhos da civilização ocidental no século 21? É provável que não: desse ponto de vista o mesmo ato nos parece cruel, desumano e absolutamente condenável — a menos que se tenha a mentalidade de um inquisidor. Muitos por aí têm a mentalidade de um inquisidor, é verdade! Devem ser apoiados? O que têm a dizer sobre isso os Direitos Humanos?

Para concluir, existe na História Cultural um debate sobre a utilização do espaço e sua representação. E há dois espaços nesse episódio: a rua e o museu. O lugar de Borba Gato é aqui ou lá? Tanto defensores quanto detratores do sertanista têm argumentos políticos para oferecer. Independente disso, talvez concordem que a rua tem um enorme poder de legitimação. Essa foi uma das razões para estar numa avenida e para se meter fogo no monumento (outra foi chamar atenção, visto que o debate pelas vias legais costuma ter pouco ou nenhum apelo). Isto posto, um índio que cruza com a estátua de Borba Gato sente-se injustiçado tanto quanto um admirador do bandeirante se sente empoderado. Tais sentimentos são inegáveis, e talvez não correspondam ao tipo de sociedade que desejamos.

Museu parece mais adequado à reflexão —principalmente de coisas que não se deve esquecer. E é claro: não devemos nos esquecer de quem foi Borba Gato. Nisso com certeza concordam tanto historiadores quanto admiradores do sertanista, incendiários e índios.