Poder e arte: a utilidade que os reis descobriram

Poder e arte: a utilidade que os reis descobriram

Arte e propaganda possuem uma evidente relação, conhecida de publicitários e designers. Tanto Andy Warhol quanto o italiano Mimmo Rotella souberam como ninguém explorar essa simbiose. A diferença é que esses dois artistas fizeram a crítica da sociedade de consumo, seguindo caminho diverso de muitos colegas seus, que no passado dependiam de patronos. A arte do século 20 se manteve em seu território “sagrado”, conquistado de vez pelos modernistas. Nem sempre essa distinção entre arte e propaganda foi clara. Coube ao capitalismo industrial especializar a última dessas atividades, colocando-a exclusivamente a serviço do mercado.

Os conceitos são mesmo diferentes: a arte pode não ser útil; a propaganda necessariamente é. A arte não é apenas um meio, ainda quando utilizada como tal. Já toda propaganda se restringe a meio, ainda que tenha a mais elevada forma estética, nos padrões internacionais de VMLY & R, Dentsu, Publicis etc. Significa que a arte é uma coisa e a propaganda outra, certo? Depende da época e de quem patrocina. O “detalhe” é que a arte dependeu de patrocínio no maior período de sua longa história, que começa no Antigo Egito (o neolítico é pré-história). Somente a partir do Romantismo, no século 19, é que se generaliza a independência criativa do artista, e só depois disso a arte passa a existir enquanto “art pour art”.

A regra anterior, sob a qual grandes artistas viviam, fazia deles uma espécie muito singular de marqueteiros: tinham a finalidade de vender não talheres ou carros, mas ideologias e glória pessoal. Podem não ter sido os únicos artistas em atividade, mas eram dos mais importantes. Trabalhavam sob encomenda para reis, papas e mecenas privados, como Sigismondo Malatesta, Roberto Martelli, César Borgia etc. A propaganda, nos dois primeiros casos, relaciona-se a figuras de Estado, às vezes com estritas normatizações doutrinárias. Ou seja, a ideia de que a arte é inútil só tem sentido para a cultura do século 20. Basta analisar o famoso Estilo Luiz XIV para reforçar essa tese.

Luís XIV da França, o Rei Sol, de Hyacinthe Rigaud (1701)

O Absolutismo cria o exemplo supremo dessa arte de escala industrial, feita para fins propagandísticos. É bem provável que, antes da era stalinista, na ex-União Soviética, o Classicismo francês se constitua como o ponto culminante de uma arte completamente subserviente aos interesses de uma elite dirigente, situação que se prolonga de meados do século 17 ao universalismo de Napoleão Bonaparte. Teria dito Luiz XIV aos auxiliares Colbert e Le Brun, autoridades máximas da Academia de Belas Artes, por ele instituída: “Entrego-lhes a coisa mais preciosa desde mundo — a minha fama”. Assim, o capitalismo nascente, durante sua fase de acumulação primitiva, explorou com o mesmo autoritarismo de Stálin a capacidade dos artistas em representar a ideologia oficial. Toda a pintura de Versailles é uma gigantesca peça publicitária, Sistina secular com arroubos de idealização e culto à personalidade.

Arte e propaganda confundiam-se, muito embora os grandes mestres tenham se influenciado mutuamente, transmitindo em paralelo seus conhecimentos, de geração a geração. Seus patrocinadores, no entanto, nem sempre valorizaram esse aspecto formal, iminentemente estético. A beleza só os interessava enquanto veículo de um conteúdo apropriado, em regra idealizado em seus próprios termos.

Gregório, o Grande (540 a 604 d.C), parece ter sido o primeiro papa, e personalidade de um modo geral, a promover a pintura. Não era uma atividade importante como passou a ser, havendo até então poucos e insignificantes registros dela, em parte graças ao declínio da civilização urbana na Alta Idade Média. Com Gregório, o catolicismo abre suas igrejas à pintura, levando-as a se tornarem as enormes galerias de arte tal como as enxergamos hoje em dia, em particular nas cidades italianas (durante 500 anos, desde o século 14, Roma e Florença consolidam-se como os grandes centros da arte ocidental). Segundo E. H. Gombrich, Gregório Magno apostara na pintura por acreditar que ela exerceria uma importante função didática junto à massa analfabeta, recrutada pelo Cristianismo. Destinada ao povo, era o sucedâneo do livro, restrito a um escasso número de letrados da sociedade medieval, normalmente religiosos, confinados nos mosteiros, e burocratas. Talvez o último exemplo dessa finalidade propagandística para a Igreja tenha sido o Barroco, destinado a seduzir as mesmas massas populares, vulneráveis desta feita à Reforma, no século 16.

Entre os grandes “publicitários” do Barroco, patrocinado por Urbano VIII, constam Caravaggio e Nicolas Carracci. São eles os principais inventores daquela iconografia sagrada que chegou até nossos dias, copiada e vulgarizada à exaustão, estimulando a devoção de nossos pais e avós, por meio de folhinhas com imagens de Nossa Senhora, Jesus Cristo e demais santos católicos. Extremamente eficaz; no entanto, era apenas a continuidade de uma tradição quase imorredoura.

Fernando VII da Espanha, de Francisco de Goya (1815)

Os nomes desses artistas publicitários começam a ser reconhecidos depois de Giotto — o turning point da fama individual, nas artes visuais — e tem seu auge nos retratos de Napoleão, pintados por David. A origem da arte palaciana, a serviço também da realeza civil, começa ainda no Quatrocentto, na Itália. Além de ilustrar as tradicionais histórias bíblicas a pedido dos papas, a pintura passa a servir também à glorificação dos monarcas e imperadores europeus. Praticamente todas as mais importantes dinastias do continente tiveram um pintor oficial, daí a razão de tantos retratos de uma clientela preocupada em perenizar sua glória individual, por meio dos pincéis. Com isso, também os pintores se tornaram homens de grande fortuna pessoal, sendo que Peter-Paul Rubens, que trabalhou para os reis da França, Espanha e Inglaterra, constitui o exemplo supremo de publicidade oficial e esnobismo. Pode-se dizer foi o mais importante marqueteiro em muitos séculos, depois de Miguel Ângelo e sua Capela Sistina: a mística Versailles de Júlio II.

Fiel ao seu mercado, Rubens é, de certo modo, o bisavô de David Ogilvy e de nosso Washington Olivetto. A única diferença é que vendia pessoas e não produtos. Já Francisco de Goya será o primeiro a, de maneira escandalosamente explícita, subverter essa lógica e fazer a caricatura de seus clientes deslumbrados, enquanto o pagavam. Graças a Goya, Fernando VII da Espanha e sua família perpetuam-se como os modelos mais enfatuados e horrorosos da história, símbolos que eram do obscurantismo absolutista, em um país de supersticiosos. É possível que começa, aí, o divórcio entre arte e propaganda — surge a anti-propaganda que, no século 20, culminará finalmente em crítica aberta à lógica mercantil, nas mãos de artistas livres e independentes como aqueles dois, Andy Warhol e Mimmo Rotella.