Por que ainda lemos os russos do século 19

Por que ainda lemos os russos do século 19

Viver em país dito pouco civilizado já foi motivo de vergonha. Esse sentimento de mal-estar sempre esteve presente, principalmente, entre os artistas. Que o digam os escritores e os pensadores da Alemanha e da Rússia na virada do século 18 para o 19. Isso mesmo: alemães e russos tiveram o gosto de se sentirem longe dos modernos ingleses e franceses. Achavam-se atrasados, o que os envergonhava. Estavam na periferia europeia. Avançados eram aqueles que nasciam e viviam nos lugares das grandes revoluções, tanto as políticas como as econômicas e sociais.

Há quem pense que a grandiosidade de um Goethe ou de um Dostoiévski se deve ao fato de terem nascido justamente onde as mais altas aspirações conviviam com a mediocridade da vida cotidiana. Trata-se de uma hipótese crível, tomando também como exemplo o fenômeno irlandês: uma leva de autores com reconhecimento mundial nasceu na terra mais arrasada do século 19. Não é mesmo de se estranhar que escritores de outros países tiveram sensação parecida à daqueles alemães e russos. Em um lugar “vergonhoso”, poderia nascer a mais alta expressão artística.

Fiódor Dostoiévski, autor de Os Demônios e Crime e Castigo

Henry James precisou, por exemplo, sair do provinciano Estados Unidos do século 19 e ir à Inglaterra para escrever sua obra. É difícil imaginar aquele escritor extremamente sofisticado vivendo numa terra que teve uma sangrenta guerra civil, se livrou a duras penas da escravidão (sem integrar os negros ao restante da sociedade) e assistiu a uma selvagem ocupação da sua região oeste. Longe daquela “barbárie”, James conseguiu elaborar seus romances, nos quais é evidente o contraste entre o “novo” e o “velho” mundo — com larga vantagem positiva para o último. 

Pensando nesses casos, vem à cabeça a obra de Machado de Assis, outro que viveu no meio do nada. Pode existir a conexão entre tais autores, como bem mostrou Marcelo Pen no livro “Realidade Possível”. Diante da vida num lugar visto como atrasado, enfrentaram o desafio de observar o que estava em volta e estilizar a realidade. A Rússia com o seu regime de servidão e as aspirações de seus escritores de serem vistos como europeus; ou o Brasil escravagista que sonhava com um liberalismo à moda inglesa.

Nessas situações que têm caráter sistemático e não são apenas um fenômeno localizado, surge o dilema: o sentimento de estar na vanguarda da cultura em países com sociedades mal-acabadas, incompletas, em relação aos modelos civilizatórios dos europeus. A sensação de estar “fora do lugar” leva à confusão do pensamento. Não é à toa, portanto, a recorrência do tema loucura nos personagens de Dostoiévski e Machado.

Georg Lukács notou a dificuldade, por exemplo, de um Goethe e de um Schiller que eram contemporâneos dos revolucionários franceses, mas enfrentavam o imobilismo social dos alemães. O impasse social e cultural se refletia em suas obras.

“A literatura clássica da Alemanha se encontrava diante de uma matéria contraditória: no plano ideológico, tinha diante de si os grandes problemas de uma época considerável; no plano da realidade imediata, a mesquinhez da vida alemã. Goethe e Schiller estavam conscientes de dupla condição de suas criações; estavam igualmente conscientes do fato de ser essa hostilidade da matéria, no plano imediato, um problema especificamente alemão, mas que nas raízes mais longínquas e profundas estava ligada à essência da vida moderna burguesa em geral”, notou o crítico húngaro.

Algo semelhante o mesmo Lukács viu na obra de Dostoiévski, que viveu numa Rússia sacudida pela figura de Napoleão Bonaparte e em transição do regime servil para o capitalismo liberal. O ideal das elites russas era a integração aos modos de vida europeus. Que uma região longínqua e dita atrasada tenha produzido uma das mais potentes literaturas no século 19 é um acontecimento que ainda deixa os leitores intrigados pelo mundo afora. Em cena, está o choque do “velho” com o “novo”.

“A Rússia de Dostoiévski é o mundo da nova estratificação social e é por isso que os sonhos napoleônicos da juventude russa são mais enérgicos e apaixonados que os de seus contemporâneos europeus — mas o processo de reestratificação social, em si, choca-se com barreiras por enquanto insuperáveis, contra o esqueleto historicamente morto, mas praticamente ainda sólido, da antiga sociedade”, afirmou Lukács, que foi o grande leitor e pensador do realismo literário do século 19.      

O dilema da vanguarda em sociedades atrasadas foi retomado por Marshall Berman nos anos 1980. Segundo ele, no já clássico “Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar”, o personagem goethiano Fausto dramatizou as “tensões mais amplas, que agitaram todas as sociedades europeias nos anos que antecedem a Revolução Francesa e a Revolução Industrial”. O tal dilema se transforma em “cisão” no espírito dos intelectuais que estão na periferia ou na margem do centro dinâmico do capitalismo. Com frequência, a sensação de atraso social expõe o sentimento de vergonha por parte do artista que se vê à frente da sociedade e apenas enxerga o imobilismo.

Berman extrapola a discussão para os países subdesenvolvidos do século 20: “A cisão por mim descrita na figura do Fausto goethiano ocorre em toda a sociedade europeia e será uma das fontes básicas do Romantismo internacional. Mas tem ressonância especial em países social, econômica e politicamente ‘subdesenvolvidos’. Os intelectuais alemães no tempo de Goethe foram os primeiros a ver as coisas desse modo, comparando a Alemanha com a Inglaterra e a França, e com a América em processo de expansão. Essa identidade ‘subdesenvolvida’ foi às vezes fonte de vergonha; outras vezes (como no conservadorismo romântico alemão), fonte de orgulho; muitas vezes, uma mistura volátil de ambas. Essa mistura vai acontecer em seguida na Rússia do século 19”.

O caso do romance “Pais e Filhos” (1862), de Turguêniev, é exemplar dos dilemas e desconfortos. O filho de um fazendeiro leva um amigo cheio de ideias modernas para visitar a casa de sua família no campo. O tempo da história é o fim da servidão na Rússia. Numa conversa, eles comentam: “O que o homem russo tem de bom é justamente o juízo detestável que faz si mesmo”. Eles tinham vergonha da vida atrasada em relação ao que havia na Europa, sobretudo França e Inglaterra.

O problema maior para os russos de então foi avalanche do pensamento europeu (capitalismo, socialismo, anarquismo, niilismo) que devastava os personagens, como se vê em “Os Demônios” (1872), de Dostoiévski. No livro, estão tematizados os problemas que seriam enfrentados pelos revolucionários políticos do século 20. O escritor criou uma galeria de tipos novos e desajustados. Em “Crime e Castigo” (1866), o personagem Raskolnikov passa a se achar um ser humano superior, com a permissão de eliminar os outros. O crime tornava-se justificável por motivos racionais.

Ivan Turguêniev, autor de Pais e Filhos

O descompasso entre moderno e arcaico pirava a cabeça das pessoas. Tome-se a situação do personagem Rubião, em “Quincas Borba” (1891), de Machado de Assis. Ele é o sujeito que chega ao Rio de Janeiro, vindo do interior (o atraso rural), e ostenta estátuas de Fausto e Mefistófeles em sua casa no bairro de Botafogo. Rubião mostra a plena incapacidade de participar dos jogos modernos do dinheiro e da sedução feminina. No final, é claro, enlouquece. Todo aquele universo dos escritores russos — como os “homens supérfluos” do romance “Oblomov” (1859), de Ivan Gontcharov — aparece incrivelmente condensado na ficção machadiana da segunda fase de sua carreira.

Acho que dá para entender por que ainda lemos tanto, aqui no Brasil, aqueles russos e alemães do século 19. Dostoiévski, Turguêniev, Machado, Goethe e Henry James não se conheceram na época, evidentemente, mas leram o mais velho deles e seu mito fáustico da ambição sem limites. Como esses autores chegaram a questões tão parecidas, a formas de narrar que parecem dialogar umas com as outras? Muita gente não gosta de pensar assim, mas é bem possível que foi pelo fato de viver longe dos grandes ditos civilizados do mundo e sentir um baita desconforto com isso.

Para mostrar o impacto dos russos no Brasil, o pesquisador Bruno Gomide publicou nos últimos anos os belíssimos livros “Da Estepe à Caatinga: o Romance Russo no Brasil (1887-1936)” e “Dostoiévski na Rua do Ouvidor: a Literatura Russa e o Estado Novo”. Neste ano, saiu “Como Ler os Russos”, de Irineu Franco Perpétuo, que vai atrair mais e novos leitores para esses irmãos de alma dos brasileiros.