Poesia Reunida, de Edival Lourenço — a trajetória de um poeta

Poesia Reunida, de Edival Lourenço — a trajetória de um poeta

Quando se pensa na reunião da obra completa de um poeta, escritor, filósofo ou intelectual, imaginamos logo que este sujeito pensante e criador esteja no final de sua carreira, ou que ela já tenha sido findada, provavelmente, com o fim de sua vida. A morte, ponto final irrevogável de qualquer caminhada, é o ponto final definitivo no percurso intelectual ou artístico, já que escrever, criar, pensar, são mais condições e necessidades anímicas do que propriamente uma profissão, especialmente no Brasil.

Quando se trata de um sujeito da literatura, essa perspectiva de trajetória fica ainda mais confusa. Um literato comumente envereda-se por muitas sendas: esbarra na crônica, dedica-se à prosa, cria na poesia, inventa contos, pensa novelas, desenha peças de teatro, mete-se a crítico e observador cultural. Quantos grandes poetas não foram e são saborosos cronistas e articulistas, vide ontem Drummond, vide hoje Ferreira Gullar e Edival Lourenço.

Essa gente que escreve, pensa. Refestela-se naquilo que Roland Barthes definiu, em uma metáfora sexual, como o prazer do texto. Eles precisam mais da literatura do que ela deles: é uma condição humana, ou como queria Thomas Mann, uma maldição.

Esses volumes que reúnem obra completa facilitam a vida do crítico. Quando penso crítica literária, penso-a como um exercício isolado, mas em busca de um conhecimento sistêmico. Preciso situar o autor na tradição, ver o fio que amarra, sinuosa e tortamente, o todo da produção do autor: por mais que os livros não sejam iguais e nem falem todos na mesma dicção, eles precisam dialogar em sua diferença, em contrário, não teremos um projeto artístico que sirva a uma sensibilidade, mas aventuras errantes no campo da linguagem, como disse João Cabral, “tiro nas lebres de vidro do invisível”.

O volume “Poesia Reunida”, de Edival Lourenço, acerta no título, porque não é poesia completa, na medida em que o autor é consistente e pródigo em produção; e acerta na qualidade e organização de sua safra poética, já que, in finis res, ou começando pelo fim, podemos ver a trajetória da sua evolução poética.

Primeiro, é preciso situar o autor destes poemas: trata-se de um dos maiores prosadores da literatura feita em Goiás, e vai além: é um dos grandes prosadores contemporâneos da literatura brasileira. Goiás sabia disso desde o lançamento de seu romance, “Centopeia de Neon”, que merece e carece de uma edição e divulgação nacionais. É um crime que o Brasil não conheça uma de suas maiores obras em prosa feita na década de 1980. “Naqueles Morros, Depois da Chuva”, romance histórico, rico na arte de fabulação, foi agraciado com o Prêmio Jabuti, o mais reconhecido e valorizado do mercado editorial. Esses dois livros dão a Edival Lourenço o cartaz que merece: trata-se de um instrumentalista da linguagem, sua prosa é rica e densa; suas histórias, inventivas e convincentes. É muito boa a argamassa que fixa seus enredos e personagens, e a harmonia com a qual sua linguagem dialoga e se harmoniza com as matérias narradas é muito madura. Prosa assim tão forte não deixaria em paz o poeta que há nesse sujeito escrevente, impossível não fugir da sombra que o narrador faz ao versejador.

Isso seria um problema se víssemos sua obra poética como um acontecimento deslocado de sua produção em prosa. Não consigo trabalhar de modo a desconectar as partes do conjunto, a não ser para ver como elas funcionam dentro desse conjunto. A obra de um poeta é um todo, e o todo está, definitivamente, conectado na obra de Edival Lourenço. As temáticas com as quais ele trabalha, a matéria poética que o envolve e o interessa é presença nos seus livros de poemas e na sua narrativa. Há, nos seus versos, ecos nítidos de “Centopeia de Neon”, “Os Carapinas do Sri Lanka” — sobre o qual escrevi em meu último livro, “Opção Crítica” — e “Naqueles Morros…” Os temas da modernidade, da vida urbana, do nosso consciente perdido e desintegrado em meio a ideias e coisas, constituem a tônica de seus versos. A recuperação do passado, a memória íntima, a linguagem aparecendo vertiginosa, porém fruto de uma meditação profunda, estão evidentes em todo o seu conjunto.

Edival Lourenço
Edival Lourenço é um poeta de recursos extensos e os trinta anos de sua trajetória poética não deixam dúvida da relevância de sua contribuição

Sua “Poesia Reunida” começa com o livro “Pela Alvorada dos Nirvanas”, que é sem dúvida seu momento mais alto enquanto poeta. Trata-se de um poema longo, no qual os temas aparecem de modo a estarem alçados por um motivo bastante amplo, por isso harmoniosamente plural: tudo o que toca e sensibiliza o sujeito lírico pode ser traduzido em matéria verbal ali. Há uma fome e necessidade de tornar traduzível, em um desejo quase civilizatório de si mesmo, o que no poeta é incômodo, é sentimento, é desejo e pensamento: organizar pela linguagem, tornar o alheio universal, ser o alquimista que faz do recôndito, humanidade. O seu itinerário segue, em alguns momentos, um tom reflexivo e cinematográfico, na medida em que é recoberto de imagens em sequência, que tem moldura firme e acabada, tal como Eliot fez em “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”. Mas sua referência primordial é, sem dúvida, Ferreira Gullar e seu “Poema Sujo”, e sua maior qualidade é conseguir levar a cabo esse projeto sem cara de projeto, na medida em que parece extremamente espontâneo o versejar, mesmo que depois recoberto de uma artesania, uma costura muito meditativa, casando-se perfeitamente com o que diz Octavio Paz em seu obrigatório “O Arco e a Lira”, livro fundamental para quem almeja pensar a poesia por um viés teórico. Diz Paz: “quando a poesia se dá como condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, deparamos com o poético. Quando — passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo — o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de uma coisa radicalmente diferente: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, congrega e isola em um produto humano: quadro, canção, tragédia.”

Se o poeta inicia em “Pelas Alvoradas…” nos falando de uma manhã de domingo que comete atrocidades ao seu coração, Eliot também inicia nos apresentando uma imagem, e é com ela que vai abrindo o seu leque de comunicação com o leitor. A estratégia é a mesma nos dois poetas, cada um com sua dicção. No poema de Eliot nos deparamos com esses versos na abertura:

“Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos”

(…)

poesia
Poesia Reunida (1983–2013) Edival Lourenço R$ 45,00 Editora Ex Machina

 

Em Lourenço, vemos:

“Esta manhã de dezembro
comete atrocidades
ao meu coração

é como um trem contrário
que atropela operários
sem apelos

(…)

a velha casa está repleta
pelo mobiliário obsoleto
dormente sob a pátina
e a fuligem
por onde fervilham rumores vultos
e alegrias de um tempo vetusto”

 

Em ambos percebemos a linguagem atuando como uma câmera em travelling, criando um ambiente no qual o sujeito se relaciona com o externo. Por mais que as meditações sejam fruto de matéria íntima, é seu choque com o real que alimenta o texto. Esse encontro com a realidade, sua brusca contemplação e inaceitação, amarra a poesia de Lourenço a uma fatura extremamente moderna — e ressalto —, mais moderna que modernista. Modernista estaria conjugada às nuanças do modernismo brasileiro, cheia, em um primeiro momento, de ideias nacionalistas e heroísmos de estilo. Se assim fizéssemos, esbarraríamos no lugar comum de filiarmos a sua lavra à onipresença de Carlos Drummond de Andrade, como se faz com quase todo mundo que escreve poesia no Brasil. Prefiro a fatura moderna, e ela me é preferível, tanto ao falar de Lourenço, como ao falar do “Poema Sujo”, porque aí Baudelaire entra em cena: é ele a matriz da modernidade, é dali que deságua esse rio que ousa tornar poesia o que era inadequado para o versejar, para o literário, é com ele que o belo sai de cena e abre caminho para o estético. Não é por acaso que há, entre Lourenço e Pio Vargas, um profundo entendimento temático, embora nem tanto formal: Edival começa a escrever na década de 80, mas não é um poeta década de 80, enquanto Pio é totalmente 80. Mas isso, na visão daqueles que pensam que o poeta tem que obrigatoriamente dialogar com seu tempo, não lhe é um pecado, claro. Para estes eu diria: a dívida de Edival está paga, e muito bem paga, com “Centopeia de Neon”.

“Pelas Alvoradas…” é um poema glutão, e por isso é tão feliz sua escolha como peça de abertura. Mais do que poema longo, é poema síntese, muito revelador do projeto intelectual e artístico de Edival. Nele ecoam temas, situações e linguagem outrora utilizados, e também outros autores, além dos já citados, como, por exemplo, Fernando Pessoa, em uma menção quase direta de “Tabacaria”. Diz Pessoa:

“Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela”

Em “Pelas Alvoradas” a lógica de problematização é semelhante:

“E compor sinfonias só (l)
de entrelinhas
que nem a genialidade de Bach
suspeitou um dia

e aqui me comungo
com a hóstia das idades”

Até Proust entra em seu menu de citações, fazendo clara referência ao título brasileiro do segundo volume da saga proustiana:

“meus netos não matarão a festa rave
não dispensarão as namoradas em flor”

Depois de passar por longa seara temática e formal, com várias experimentações de linguagem e de temas, o poema caminha para a reflexão negativa, mas condicionada, rendida, como se tivesse descoberto a dimensão humana, finita e ao mesmo atemporal, da existência. É uma espécie de “Ideias Íntimas”, de Álvares de Azevedo, feito por um sujeito lírico adulto e lúcido, a respeito dos limites do que é possível viver, pensar, lembrar, sentir.

Seus outros livros de poesia, no volume “reunidos”, estão um pouco distantes da força do autor de “Pelas Alvoradas…”, mas não porque pecam em qualidade ou são descurados, mas por serem claramente experimentos, procura da linguagem e de como torná-la eficiente na construção de uma obra em versos que tenha a mesma solidez e segurança da obra em prosa. De certa forma, o livro como um todo é um romance de formação em verso, no qual vemos a maturidade de um poeta encerrar, no começo, o seu percurso.

Mas não se engane o leitor da obra de Edival, as duas sendas — prosa e verso — não são gavetas diferentes de produtos distintos. Elas estão amarradas por uma sinuosa linha que ata a obra completa, que ainda não se findou, nesta procura do ser pela linguagem.

Leia uma seleção de poemas que compõem o livro

Edival Lourenço

O grito de Deus

O grito antes da eclosão
não existia
mas talvez dormisse
e se elaborasse
nas cordas vocais
de algum mistério.

O grito depois da eclosão
reverbera pelos vales
e se dissipa
com sua carne
de etérea argila
e volta a se esconder
em alguma concha de enigma.

O universo, o universo inteiro
por assim dizer
talvez não passe
de um grito de Deus.

Nostalgia de inimigos

Alto, lá! Velho camarada,
não estamos em 68!
Não temos nesta hora um estudante
no Calabouço vítima de assassinato.
Estão agora os estudantes
é curtindo pornografia na rede
empanturrando-se
de coca-cola e fast-food
nos corredores do shopping
depois vagam pelas madrugadas
em ritual de incêndio
aos Galdinos.

Glauber está morto, meu velho,
e o sangue de Lorca
já não esguicha
de nossos pulsos cortados.
A utopia do proletariado
reduziu-se a isso: um insosso
código de defesa
do consumidor
lesado.

Não estamos em 68!
Nenhuma bomba explode
no colo de um milico desavisado
nenhum Vladimir Herzog
é novamente enforcado
nas dependências do DOI-CODI
nenhuma guerrilha eclode
das matas de Xambioá.

E nestas plagas distantes
desta América confusa
há outra gema soturna
contida no miolo das claras
manhãs de sol
e a sola do coturno
que nos assola de sol a sol é difusa.
A nova ditadura
não expõe uma cara
que possamos pichar.

Definitivamente
velho camarada
não estamos em 68!

Tempestade em noite densa

Lá fora ainda chove
e a noite é densa
e se adensa em meu peito
tão pequeno tão contido
em seu medo de existir
ou de inexistência.

Lá fora ainda chove
e Deus tomado de toda fúria
atira seus dardos
suas pedras de intifada
ouço o rufar dos tambores
o fragor de tempos
antigos
aflorando dos abismos
anteriores à criação
restolhos de algum material
que Deus desprezou
nos seis dias
de trabalho duro.

Lá fora ainda chove
oh, meu Deus!
e a noite é densa
e desesperado procuro
sobre o criado mudo
nas gavetas da cômoda
que foi de meu eneavô
(antigo bandeirante)
algum segredo alguma chave
alguma palavra mágica
que desarme
essa casa de espantos
que nesta noite feroz
solta seus fantasmas
de famélicos mastodontes
para pastarem a relva
de minha solidão.

Ainda uma vez
uma vez mais
lá fora é a noite dos tempos
crescendo a pleno fermento
o palco da ira de Deus
chicoteando o Satanás
na jaula dos exemplos
e aqui dentro
em vão procuro
em todos os vãos
do claro e do escuro
uma chave que desarme
uma arma que debele
esses arcabuzes
essas bazucas
esses zabumbas infernais

um laço que desate
as auroras em segredo
e acenda a chama firme
dos castiçais.

O hipocondríaco

Alérgico à própria alegria
mas alegre por ser alérgico
o hipocondríaco é o avesso
do próprio avesso já inverso
nesse prolixo paradoxo
vive em busca de moléstia
pro remédio que ele já tem;
sonha sempre com um mal
que possa vir para o bem
mas com efeito colateral
que lhe possa fazer refém
de um desmaio catafórico
ou de um choque anafilático
e por fim sentir-se eufórico
em pleno estado sorumbático.

Rebelião no calendário

Dois dias de fevereiro
Escaparam março afora:
Um foi preso no mesmo ano
O outro saltou para fora

Está sitiado no bissexto
Lutando pra ir embora.

Adão Redivivo

Quem me dera
na casa & jardim do Éden
com mesa farta & camassutra
feito um quasar consorte
abarrotar minha tenda de estrelas
eme nutrir de costelassãs
ao ponto
com sal da Terra
&
pimenta do reino eterno.

Susto ante o trivial

Pouco, ao quase nada, sou
daquele que você conheceu
e considerando
que aquele de então era eu,
já nem sou eu.

Sou fantasma de mim mesmo
ou mera projeção
ou, quando muito,
semelhante meu.

Quanto mudei nestes anos!

Pela alvorada dos nirvanas (2 trechos)

…e se
Deus e o tempo
no envelhecimento
simultâneo
numa caduquice
recíproca
deixam derrancar a química dos corpos
a física das gravitações
o azul do firmamento esmaecer
a água da terra subir em fumos
ou vazar por frinchas laterais
o pé-direito do céu
caruncha e apodrece
rompe-se
a musculatura estelar
e o mundo já flácido
no irremediável colapso
com cacarecos em todo canto
com tempo goro e Deus gagá
vira uma herança jacente
um monturo putrefato
com cheiro de mofo
de que Lúcifer
já caquético
nem queira cuidar?

…não sem antes me chamar
ao pé do catre de morte
e me dar o único conselho prestável
que me persegue desde então
embora não tenha sabido
aplicá-lo a contento
viva filho
viva tão somente
a vida é logo
a morte para sempre
não se atreva nunca meu filho ser
um advogado sem advocação
nunca seja como eu
que sendo ateu tirava terços
não se preocupe meu filho
a qual santo vai se devotar
antes se preocupe com o volume
de sua fé
se sua fé for forte o bastante
até Nossa Senhora de Velhas Matracas
opera milagres

O vinho dos dias

Os dias são frutas
plenas de caldo e viço
num daqueles cachos
ainda apegados à videira.

A gente colhe os dias
transporta os dias
que se ferem pelo mau jeito
no assoalho da carroça.

Os dias a gente esmaga
com os pés sobre a tina
dos ofícios e do seu sumo
faz o vinho
da safra possível.

Vem, amada minha!
Vamos nos embriagar
com o vinho desta safra
depois a gente se deita
sobre o bagaço dos dias.

E as sementes lançadas ao solo
vão escrevendo novas videiras
pela caligrafia das heras.

Constatação

Ao redor tudo é temeridade;
a vida um tremendo bolo:
uma brevidade.