A Morte de Ivan Ílitch: uma reflexão acerca da insignificância do homem frente à proximidade da morte

A Morte de Ivan Ílitch: uma reflexão acerca da insignificância do homem frente à proximidade da morte

Com “A Morte de Ivan Ílitch”, romance publicado em 1886, Liev Tolstói (1828-1910) talvez tenha escrito sua novela mais amarga, muito mais ainda do que “Guerra e Paz”, monumento de mais de l000 páginas sobre a baldada invasão napoleônica à Rússia em 1812. Em “Guerra e Paz”, Tolstói elabora um quadro milimetricamente detalhado de uma sucessão de confrontos campais, de natureza sangrenta, portanto, mas nunca se esquecendo de pontuar a narrativa bélica com a vida íntima de uma família. A morte para Tolstói torna-se desde então um leitmotiv vital em seus trabalhos, ainda que o tempere, como já se disse, com fatos comezinhos — e é nisso que reside a genialidade do russo. A finitude em A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói (tradução de Lucas Simone, Antofágica, 312 páginas), adquire tintas muito mais dramáticas porque 1) se trata de um homem jovem, mesmo para os padrões do século 19, haja vista o próprio Tolstói ter passado dos 80 anos; 2) o protagonista sucumbe a uma enfermidade implacável, que se arrasta ao longo de muito tempo e para a qual nem se sonhava com qualquer possibilidade de cura — isso, sim, uma constante na época em que se passa a história. Tudo leva a crer que se trata de um câncer do aparelho digestivo; 3) poder-se-ia admitir que Ivan Ílitch se fosse ainda moço, o ponto não é esse. O que Tolstói não deixa escapar é o caráter rasteiro da vida que levara. Não fora um biltre, um corrupto, um degenerado. Pelo contrário.

Ao esquadrinhar a vida de seu personagem principal, Tolstói lembra que Ivan Ílitch, o segundo de três filhos, dosava a personalidade excessivamente séria do primogênito e a rebeldia do caçula. Era em princípio mau aluno, mas à medida em que vai amadurecendo, toma gosto pelos estudos e chega a magistrado. Casa-se com uma mulher “nada feia”, Praskóvia Fiodorovna — que vai se transformar muito nesse aspecto, ao passo em que revela sua índole psicopatológica ao querer que o marido só se interesse por ela —, mas sem absolutamente ter caído de amores pela donzela, acreditando que isso é o adequado para a vida exemplar que deseja ter. Nesse tópico, incorporando Ivan Ílitch, o autor se dedica a uma pletora de observações de acerbo questionamento à vida burguesa — ou pequeno-burguesa. Ivan Ílitch se deixa seduzir pela atmosfera feérica do lugar em que mora e não consegue atravessar o mês com saldo positivo, malgrado ganhe bem. Vive acima de suas poses, recebe amigos para jantares, dá festas, e louve-se Tolstói por não culpar Praskóvia Fiodorovna dos arroubos de falso aristocrata do marido. Praskóvia é, em realidade, o oposto, talvez até avarenta, como quando reclama da conta da confeitaria, 45 rublos, gastos num dos muitos convescotes de Ivan Ílitch.

Apesar das constantes diatribes conjugais, a vida desse tranquilo juiz corre como ouro sobre azul. Ao mesmo tempo em que se angustia, por causa de seus delírios de grandeza, se conforma. Tolstói aprofunda-se mais um tanto no âmago do personagem ao expor seu modo de ser vacilante, débil, meio estúpido. A figura de Praskóvia Fiodorovna funciona na novela como um contraponto à de Ivan Ílitch. Ele sobe, ela o recoloca na dureza da superfície; ele divaga, ela vocifera verdades; ele se preocupa em nutrir o espírito, ela o corpo, e os dois em excesso. Certamente nesse particular se aplicaria a pecha de misógino que se tenta a todo custo grudar em Tolstói, uma visão o seu tão ligeira. Ao escrutinar a relação íntima do casal, o autor quis, ao contrário, enaltecer a importância de pontos de vista que não necessariamente convergem — e mesmo se opõem — num casamento. Praskóvia, o feijão; Ivan Ílitch, o sonho, a fórmula perfeita para se ter uma união feliz, sem sobressaltos, ao menos. A questão para Tolstói são os exageros de parte a parte, como no episódio da despesa da confeitaria. Em passagens como essa, o autor explicita a caráter farsesco das relações humanas: Ivan Ílitch se excedia em suas tentativas de exibir seu sucesso, sua ascensão social, em demonstrar que vencera a fim de conquistar mais e mais amigos, mas apenas os tão ou mais poderosos que ele. Nesse ponto, há uma pungente ironia de Tolstói, como se vai ver.

A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói (tradução de Lucas Simone, Antofágica, 312 páginas)

A índole pacífica — e passiva — de Ivan Ílitch funcionava como uma muralha frente aos incômodos da vida cotidiana. O trabalho lhe consumia, a vida em família era excruciante, os amigos foram se lhe desvelando sua hipocrisia, e a vida seguiria em perfeita ordem, não fosse um detalhe: Ivan Ílitch começa a sentir desconfortos, que, mesmo não se caracterizando como dores no começo, pioravam a galope. A boca sabia a amargo, o lado esquerdo do ventre se comprimia. Resolveu consultar um médico. O confronto das duas autoridades é um trecho que passa ao largo do leitor mais apressado, até porque é descrito muito sucintamente, mas merece nota. Ivan Ílitch realiza exames, se submete ao médico, obedece às suas ordens. Nessa parte, fica óbvia a intenção de Tolstói deixar registrada sua revolta com o tratamento recebido pelo protagonista. Ainda que seja um bom paciente e esteja em alguma medida já alquebrado por uma qualquer moléstia — como o outro certamente sabe — o juiz não lhe desperta compaixão, como evidencia Tolstói ao escrever que Ivan Ílitch quer saber o que tem, afinal, e o doutor lhe responde que precisa fazer mais apontamentos, que seu consulente precisava esperar. O homem é um animal tão tacanho, tão fraco, tão insignificante que está sempre a precisar de quem o oriente, o trate. Mesmo os poderosos têm de se sujeitar ao mando de outrem, principalmente no momento em que estão mais vulneráveis. Tolstói apresenta ao público um relato derramado, vívido, cru acerca do quão insanamente dicotômica é a condição humana. A vida pode se acabar num instante, se provando inúteis todos os esforços em contrário. O homem é colocado frente a frente com a morte, da aurora ao crepúsculo, do berço à sepultura, onde, enfim, se apazigua com ela. Para Tolstói, a morte é a única possibilidade de paz na Terra.

A doença de Ivan Ílitch avança e, claro, os amigos que frequentavam suas festas suntuosas somem. Mesmo a família o renega a um degredo sentimental — até porque ele a negligenciara primeiro. O único a lhe permanecer fiel é Guerássim, o mujique que trabalha para ele. O servo representa o homem do povo, o sertanejo da Rússia, o Fabiano de “Vidas Secas” transposto para a novela de Tolstói. Um forte antes de tudo, Guerássim não se afasta um palmo da doutrina cristã, sua única esperança. Tolstói nos propõe uma reflexão de fundo teológico aqui. A agonia de Ivan Ílitch, não exatamente um homem religioso e um rematado estróina, é acompanhada com devotado zelo por um humilde camponês, que pensa ser este mais que seu trabalho, sua missão de vida. Não pode lhe relegar ao abandono, muito menos doente. É a vontade de Deus que passe por todo aquele padecimento, como Seu próprio filho no calvário. Não se escolhe Deus, Ele é que nos escolhe. Essa seria a derradeira chance para Ivan Ílitch a fim de que expie seus pecados, sua vida falta de sentido, seus excessos e, assim, possa ter sua redenção e vá habitar a Glória. À medida em que se decompõe fisicamente, o protagonista parece ir se aproximando cada vez mais, passo a passo, da salvação. Vão lhe desaparecendo do espírito sua porção materialista, vil, a ambição, a ganância. Ivan Ílitch compreende, enfim, que fora um tolo engano ter se dedicado a perseguir o ideal de uma vida faustosa, opulenta. Isso tudo de nada serve ao homem. É incontestável a constituição religiosa do romance. Tolstói se empenha em transmitir o ensinamento arraigadamente cristão de se buscar antes de qualquer coisa o Reino de Deus e tudo receber em acréscimo. Ao assumir tal postura, o autor rivaliza com o Dostoiévski de obras a exemplo de “Memórias do Subsolo”. São muito semelhantes as trajetórias dos personagens principais das respectivas novelas: levam uma vida para a qual não encontram fundamento, enfrentam vicissitudes de toda ordem — ainda que se possa considerar Ivan Ílitch um homem próspero que sofre apertos de dinheiro por querer uma vida acima de suas posses, ao passo em que o anti-herói de “Memórias do Subsolo” é pouco mais que um indigente mesmo — e superam—nas, graças à religião. Em Dostoiévski, é palpável a pouca convicção do protagonista, enquanto Tolstói consegue persuadir o leitor quanto à conversão de Ivan Ílitch. Ao se empreender tal análise, há que se tomar por base a vida dos escritores. Dostoiévski escapara por pouco do pelotão de fuzilamento, submetido, como Galileu Galilei (1564—1642) no século 16 à condição de apóstata de seus princípios. Assumiu à fórceps uma postura menos beligerante ao longo da vida que lhe restara e isso, por óbvio, se espelhou em sua literatura. Já Tolstói tornou-se de fato alguém que valorizava não a religião, mas o sentimento religioso — em demasia até. No fim da vida, se retirara do convívio social e vivia como um ermitão, e o ser religioso (a seu modo) também se observa em seus trabalhos — ainda que seu próprio filho não o compreendesse e o desafiasse quanto à mensagem para ele pouco cristã da morte e da vida sempre imbricadas na trajetória terrena do homem.

Liev Tolstói, 1896

Tolstói publica “A Morte de Ivan Ílitch” já completamente isolado. Em “Uma Confissão” (1882), sua obra anterior, já se mostrava completamente desacreditado da ordem estabelecida e em “crescente confusão espiritual”. Faz duros ataques à Igreja Ortodoxa e despreza a propriedade privada e tudo o que para ele fede a um modo de vida burguês. Fundamenta informalmente uma religião, o comunismo místico, cuja premissa maior é a fé no amor.

Depois de “Uma Confissão”, tudo o que escreve tem um pensamento de viés fortemente moralizador, pragmático e educativo, e é assim que entende a natureza da arte doravante. No ensaio “Que é a arte?” (1898), posterior a “A Morte de Ivan Ílitch”, portanto, Tolstói revela-se, enfim, um fanático. Para ele, é abjeta a arte que não se inspire na moral, a sua arte, inclusive. O conceito de arte para Tolstói adquire um caráter pretensamente superior: a arte digna desse nome é aquela em que há a reprodução fiel dos sentimentos e da consciência do povo à luz da religiosidade. Tal tendência evidenciou-se com força nos estertores do século 19. Todo escritor deveria com seu texto passar um ensinamento, um saber, uma lição (de moral). Não se valorizava mais a narrativa que ousasse tirar o homem do rés do chão; tudo tinha de ter um caráter utilitário, adotando-se para tanto uma linguagem fluida e sem sofisticações verbais de nenhuma ordem.

Apesar do crescente desvario de Tolstói, “A Morte de Ivan Ílitch” é uma defesa inquestionável do gigantismo da natureza humana ao discutir temas como a devassidão do homem no decorrer da vida; o sobe-e-desce na escala social; as aflições tão particulares do casamento, e, em especial, de um casamento fracassado, a maneira mais cruel de se estar só; a fragilidade diante da doença; a deterioração do corpo enquanto o espírito se aprimora; a possível relação entre uma e outra coisa e a consequente mudança de vida, que, por sua vez, origina a absolvição de todo pecado na iminência da morte. Se se pudesse resumir tudo o que Tolstói pretendeu com o livro — e não se pode — em uma única palavra, esta palavra seria pena. Tolstói tem pena da humanidade. E o homem é mesmo digno de toda a compaixão que puder inspirar.