A Peste, de Albert Camus, é metáfora para se entender como o Brasil chegou ao caos

Histórias sobre doenças misteriosas que num curto espaço de tempo se alastram sem controle sempre povoaram o imaginário das pessoas. E esse também é o caso de “A Peste”, romance do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), publicado em 1947. A obra maior de Camus foi redescoberta e tem chamado a atenção de muitos leitores — em especial nos diversos países da Europa, muito em razão, por óbvio, da pandemia do novo coronavírus, já nem tão novo assim. O Velho Mundo foi o primeiro a acusar o golpe, principalmente na Itália e na Espanha, devastado pela covid-19 e na sequência pela avalanche de falências, concordatas e desemprego.

Livros de ficção cujo pano de fundo são cenários de epidemias ou pandemias, como também se constata em “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), do português José Saramago, e de não-ficção que descrevem a disseminação de doenças no passado, a exemplo de “A Bailarina da Morte”, que trata da gripe espanhola de 1918, das historiadoras brasileiras Lilia Moritz Schwarcz e Heloísa Murgel Starling, nos fazem refletir sobre a importância do investimento em ciência, que políticas públicas de longo prazo — como fornecimento de água encanada e tratamento do esgoto — e a transparência das autoridades no enfrentamento do problema fazem toda a diferença.

A Peste (1947), de Albert Camus
A Peste, de Albert Camus (Record,‎ 288 páginas)

“A Peste” narra a chegada de uma epidemia à cidade argelina de Orã — que, ironias à parte, lembra Wuhan, cidade chinesa de onde se disseminou o coronavírus. O personagem principal é Bernard Rieux, médico consciencioso e um tanto workaholic que combate a doença até que ela afinal se dissipa, muitos cadáveres depois. O narrador detalha como a população, num primeiro momento apática, se mobiliza. Os mais destemidos, inclusive, vão ainda mais longe e se arriscam a fim de debelar a praga.

Como o homem é seu próprio lobo e a vida continua, há os que se aproveitam do infortúnio alheio, como um personagem que passa a ganhar a vida vendendo produtos racionados à sombra da lei e com preços exorbitantes. Os poderosos batem cabeça e tergiversam sobre falar abertamente acerca da doença, o que é um prato cheio para a fome de textos recheados de acerba crítica social de Camus, um esquerdista convicto que não se furta a chamar as coisas por seus verdadeiros nomes.

Em “A Peste”, depara-se a todo instante com a busca do homem por dar forma à experiência, fenômeno a que o crítico literário Antonio Candido (1918-2017) deu o nome de fabulação. A ânsia por entender o ambiente em que se está e, por extensão, todo o mundo, a casa da humanidade — daí veio o termo “ecologia”, ou “o estudo da casa”, em grego) — talvez seja a característica que melhor define o homo sapiens. O homem é a única criatura sobre a Terra que, ao desenvolver um sistema nervoso capacitado para tanto, passou a se preocupar com a procura de respostas para a sua errância pelo planeta afora, o que se desdobrou no aparecimento da religião, da ética e da filosofia, por exemplo.

O romance de Camus toca essas três raias do conhecimento, ao falar da atuação do padre e de Rieux em seus respectivos ofícios no combate à doença. Com profundidade, com dureza, nos arrancando lágrimas que talvez não derramássemos se o lêssemos dez anos atrás, sem pandemia. O homem — e, muito em especial o homem público, os políticos — vai ter de se ver como um animal que não pode jamais prescindir de sua grei, de seu grupo, que terá de cada vez mais se coletivizar, até porque o espaço físico do planeta se tornou muito mais escasso de 70 anos para cá. Não vale mais o “cada um por si e Deus por todos”. “A Peste”, que como todo clássico aborda os temas mais diversos de forma a estabelecer um novo paradigma, um novo jeito de viver melhor, é político, é humanista, é filosófico e é profético. É impossível não se indignar com o que fizeram do Brasil no que respeita à luta do poder público contra a pandemia — se é que houve alguma luta. A peste, em 1918, 1947 ou até este malfadado 2021, é assunto de todos. Que o Brasil tenha melhor sorte que Bernard Rieux. Camus avisou.