A chave para se compreender a arte

A chave para se compreender a arte

O público leigo sempre olhou para a arte contemporânea com desconfiança. E isso não tem muito a ver com manifestações estranhas como “performances”, “happening’s” e “vídeo arte”, surgidas no último século. Podemos nos limitar à mais tradicional — e por séculos também a mais importante — forma de expressão artística, que é a pintura. Apesar desse público leigo apreciá-la na forma abstrata, amplamente aceita como enfeite, parece, no entanto, jamais abdicar de uma ideia fixa: o “sentido”. Quer saber “o que representa”, para só então creditar o trabalho de um artista. Afinal, esse público irônico parte do princípio de que “jogar” tintas numa tela não constitui uma operação “tão difícil” quanto pintar uma paisagem ou um retrato, da forma mais convencional possível. Nesse quesito, Yves Klein ou o brasileiro Nuno Ramos seriam muito mal avaliados. O sentido que o leigo aplica à palavra “arte” parece estar associado à capacidade de atender a um desafio específico: o desenho (no caso, realista), que serviria de base à pintura (portanto, também realista).

Em certo momento, esse raciocínio podia ser aplicado, mas no geral não é o conceito de arte ligado à História, cujo objeto é um sistema autônomo e muito antigo. Analisado em conjunto, constatamos que poucas vezes a representação fiel da realidade ocupou os artistas, nesse sistema. É possível até mesmo propor uma cronologia, mais ou menos aproximada: desde o Antigo Império egípcio até o século 21, e do século 20 até o presente, a arte foi predominantemente não realista. No curto intervalo mencionado é que houve uma ruptura aparente, quando a “realidade” surgiu nas telas. Seu predomínio durou no máximo 500 anos, desde o Neolítico: nos outros 11 mil e 500 anos prevaleceu a fantasia. Esse realismo moderno, por vezes quase fotográfico, teve tudo a ver com o aparecimento da sociedade burguesa e capitalista. Não é por acaso que sua tradição tem raízes nos países protestantes do Norte europeu, em particular os Países Baixos e Inglaterra. É de lá que vieram os nomes de Hans Holbein, Pieter Bruegel, Frans Hals, Joshua Reynolds, John Constable e outros “pintores de gênero”. Isto é, retrato, paisagem e natureza morta. Depois de milênios servindo a cortes religiosas e seculares, a pintura descobriu a natureza e o cotidiano das pessoas comuns, mesmo quando se tratava de nobres.

Quão diferente disso são os poucos temas — mitológicos, religiosos e alegóricos — que dominam quase toda a história da pintura! Mas é claro: não é possível avançar sem esclarecer o conceito de realidade. Porque para o católico medieval, por exemplo, o mundo espiritual era a realidade, e seria anacronismo afirmar o contrário. Ocorre que não somos pessoas daquela época nem de qualquer outra, do passado, para reafirmar esse antigo conceito de realidade. Nossa definição mudou: o que chamamos hoje pelo mesmo nome é o mundo que temos diante dos olhos, captável por câmeras fotográficas. Enfim, aquilo que para o público leigo parece ser a única coisa capaz tornar realmente admirável o trabalho artístico. Ou mesmo de “dar sentido” à arte, que seria então a capacidade de reproduzir o que se vê, apenas utilizando-se das mãos e de um “olho clínico”.

Desde o Oriente Antigo, passando por Grécia e Roma, até a Idade Média — em particular nesta última —, os artistas ou idealizaram a realidade ou a imaginaram, como fazem os pintores abstratos do século 20. Sob esse critério, mesmo um afresco do “realista” Giotto se parece com uma tela do contemporâneo (e tão diferente!) Simone Martini; sendo que século mais tarde ainda veremos Peter Paul Rubens ou Rembrandt abundarem a pintura de cenas irreais, sem nexo com nossa ideia de realidade. Pois seus santos e virgens “perfeitamente desenhados” parecem ser humanos, mas estão envoltos por mundos inteiramente fantásticos, povoados de anjos e outras criaturas imaginárias. Com efeito, o que se entende por “realidade” é só a porção menor de tudo o que se pintou, até hoje, e Picasso não é absolutamente o responsável por “destruí-la”, com “Mademoiselles D’Avignon” (1907). O grande gênio espanhol só se reconectou com a mais antiga tradição da história da arte. O que parece fácil é, na verdade, trabalho intelectual e percepção.

Mas o leigo não tem a mínima obrigação de “enxergar” o que os artistas profissionais enxergam, desde o Neolítico até o século 20, e que é menos a fidelidade ao mundo natural do que a evolução técnica da pintura. É nesse sentido que a arte se constitui num sistema autônomo e coerente. Sua lenta evolução é o fio de Ariadne que liga a fantasia à realidade, desde o Antigo Império egípcio até as telas “sujas de tinta” dos nossos dias. Sejam quais forem os motivos representados (santos ou pessoas de carne e osso), os motivos são secundários em face do que realmente conta: a evolução gradativa da forma, ao longo do tempo. Isso só é perceptível no nível técnico: na forma de se desenhar, na forma de se explorar a cor e na forma de se manejar o pincel: coisas que mudam com o tempo, por acumulação. O segredo da arte é essa lenta metamorfose da técnica. É o que explica e justifica obras estranhas como as de Ives Klein e Nuno Ramos, citados acima. Portanto, ao olhar um quadro, esqueça o tema e se ligue na técnica: o tema interessa historicamente, ao passo que a técnica tem interesse estético.

Pode-se afirmar, enfim, que a abstração é a consequência lógica e natural, 2.800 anos depois, daquele primeiro ato de liberdade de um pintor da Grécia Clássica, que subverteu o modelo egípcio desenhando um simples pé frontal. Foi uma revolução, que só artistas observam, em face do tão conhecido e milenar “frontalismo” de toda a arte faraônica, em que o pé, exatamente, nunca foi desenhado senão de lado. De revolução em revolução, como esta, chegamos a Kandinsky e seguidores. Era inevitável.