Uma obra de arte é tão complicada como a cena de um crime

Podemos confiar na crítica de arte? Até que ponto aquilo que escreve coincide com o ponto de vista do artista? Não que isso seja de todo necessário, mas para que a coisa eventualmente não pareça ser tão arbitrária. Mas é arbitrária? Bons críticos de arte são cultos, eruditos. Conhecem bem a Filosofia e um departamento seu, a estética, e também a Psicologia, a História. Necessariamente, precisam conhecer a História da Arte. Têm muito fundamento e expertise, o que não é nenhuma garantia de confiabilidade em seus juízos. Afinal, tudo isso poderia servir para enganar. “Poderia”, porque não se deve acreditar que os críticos, em geral, sejam mal intencionados, embora haja muitos vigaristas.

De qualquer modo, o discurso crítico é normalmente muito difícil. Parece que a intenção não é esclarecer, mas confundir ainda mais. Certos críticos — bons críticos — conseguem ser profundos sem impor dificuldades intransponíveis ao entendimento do assunto. Pelo contrário, propiciam análises acuradíssimas, mas muito agradáveis de ler. Giulio Carlo Argan é um desses casos. Com ele, consegue-se entender até as garatujas “sem nenhum sentido” de Hans Hartung. Mas, aí é que está: as conclusões de Argan a respeito de um Hans Hartung procedem? A pergunta não é contra Argan: ela diz respeito à natureza das linguagens em jogo, da crítica e seus objetos: apenas um desses elementos é escrita. Quer dizer, é impossível olhar para um quadro de Hans Hartung e afirmar que o quadro “diz” aquilo que a análise propõe. Porque não está “escrito” em lugar nenhum do quadro: o quadro é uma pintura. Talvez derive deste fato — que não precisamos complicar ainda mais, com o significado de “dizer” —, a desconfiança da gente comum, em relação à arte e à crítica.

Por certo, a crítica se vale muito de sensibilidade e intuição para formar seus juízos. É legítimo que Giulio Carlo Argan interprete Hans Hartung — o antípoda de Piet Mondrian, par excellence — ao seu modo. A dúvida é se pode ser um juízo categórico, o que nos lança na questão da cientificidade da crítica. Não é o que discutimos aqui, diretamente. Mas nos preocupamos com a confiabilidade: imaginamos Hans Hartung lendo o que disse Argan a seu respeito, linha por linha, e como reagiria a cada uma dessas sentenças. Coincidiriam mesmo com o pensamento do pintor, ao executar seu trabalho? Até os artistas costumam ser céticos em relação à crítica, e por isso preferem o silêncio. A questão de fundo é que jamais um quadro (ou outro tipo de trabalho) pode ser compreendido isolado de seu contexto. O contexto é de fundamental importância para se entender a arte.

Toda obra de qualidade contém em si as pistas para ser interpretada: é como a cena de um crime. Aos olhos de um leigo, cenas de crime podem parecer tão embaciadas quanto uma tela da segunda fase de Hans Hartung. Complexa até mesmo para os peritos e investigadores, que coletam os vestígios, a partir dos quais conseguem reconstituir o quebra cabeça: aquele fiapinho de lã que parece não significar nada tem todo o interesse. Pode até ser a chave do mistério — como a pincelada ágil de Hartung, que atravessa a tela! As pistas conduzem os investigadores para fora da cena, e então eles vasculham arquivos, registros, contatos, influências, afinidades e antagonismos… No final, a autoridade, com muita segurança, chega a certas conclusões e pode criar um relatório. Com a crítica de arte é a mesma coisa, salvo pelas reservas de subjetividade, próprias das ciências idiográficas (ou não exatas).

Para se entender Hans Hartung de acordo com a cabeça de Hans Hartung, o quadro é só o ponto de partida. Também pode haver textos escritos por ele, declarações públicas, entrevistas: com toda a certeza palavras ajudam a interpretar os seus quadros. Porque revelam pontos de vista, intenções; enfim, o pensamento verbalizado do artista. Além disso, Hartung cursou Filosofia, viveu em tal época, conviveu com tais pessoas. Qual eram os problemas da arte, em meados do século 20, quando atuava? Quem o influenciou? Quem ele renegou? Enfim, a análise de um quadro é resultado de inquéritos tão metódicos quanto os da polícia, em torno de um crime. De forma que não basta ver a cena para enxergar o criminoso, nem o quadro para entender o seu sentido. É claro que esse contato é sempre saudável e pode despertar interesse, empatia ou repulsa, coisas assim, ligadas à emoção. É o que acontece com o público em geral e as crianças. Mas a compreensão racional de porque é feito de tal forma, com tais métodos, e porque é importante, resulta de coisas maiores, como entender a Tradição. Não há outro caminho.

Pretender que Hans Hartung represente algo conhecido é bobagem. Porque um filão da pintura pós-cubista já não representa nada: é um organismo autônomo, vivo. Só pode ser compreendido nesse sentido, e não mais como mimese. Se se perguntar “o que” representa, obviamente não é mais o mundo. Se se perguntar “por que” tem essa forma, é que, nas palavras de Argan, “à formula racionalista de Mondrian, ele opõe, com a mesma lucidez, o ato que realiza uma vontade ética. Assim nasce a poética do gesto”, segundo a qual “o conhecer deriva do agir”. Representa assim uma abstração conceitual, uma ideia, que é uma ideia sobre o homem. Sobre quem, portanto, Hartung está refletindo, com seus quadros que parecem “não dizer nada”.

Nesse sentido — e nesse sentido, somente — a arte é uma atividade de elite, de iniciados. Mas apenas na medida em que qualquer pessoa esforçada pode compreender o que, em larga medida, também pode ser verbalizado.