O melhor livro de Paulo Coelho

Um dos clichês mais conhecidos entre os leitores que ainda existem é que não se deve comprar um livro pela capa. A premissa é que nem sempre a imagem impressa na capa corresponde ao conteúdo propriamente dito, pode ser propaganda enganosa. O melhor é sempre desconfiar. Contudo, em raras ocasiões a capa é tão verdadeira, tão involuntariamente honesta, que entrega ainda mais do que promete. Esse é o caso da primeira edição brasileira do romance “O Vencedor Está Só”, de Paulo Coelho, lançado em 2008 pela editora Agir. Em minha opinião, falando do ponto de vista de alguém que leu parte considerável da obra “coelhiana”, muitas vezes com o mesquinho proposito de falar mal, esse é o melhor trabalho do autor. 

Para quem não conhece o livro e, sobretudo, a capa, vou descrevê-la. Primeiramente, o nome do autor é maior do que o título do livro. Logo abaixo vemos uma multidão de fotógrafos diante de uma escadaria vermelha e seu respectivo tapete da mesma cor, claramente esperando a passagem de uma celebridade. Um projeto gráfico um tanto kitsch para dizer o mínimo. Mas o melhor está na contracapa. Vemos o próprio Paulo Coelho de braços abertos, vestindo elegantes roupas pretas, se expondo para ser fotografado pelos paparazzi. Esboça um leve sorriso ao estilo Mona Lisa, meio sarcástico, meio zombeteiro, claramente consciente de sua condição de estrela e exibindo-a. Tanto que emite sua própria luz, produzindo apenas uma sutil sombra de meio-dia.

Abaixo da foto lemos o seguinte texto: “‘O Vencedor Está Só’ é, segundo Paulo Coelho, uma fotografia do mundo em que vivemos. A ação se passa em 24 horas, durante o Festival de Cinema de Cannes. Produtores, atores consagrados, candidatas a atriz, top models, estilistas e um assassino em série movimentam-se nos bastidores da festa — um retrato da superclasse, a elite da elite que define os rumos de nossos dias. Levando ao leitor detalhes de como vivem e se comportam personagens baseados na vida real, o autor faz de seu romance um testemunho da crise de valores de um universo centrado nas aparências”. Percebam o sarcasmo explícito do autor que propõe criticar a “crise de valores de um universo centrado nas aparências” abusando dos mesmos métodos logo na capa. Será psicologia reversa?

O Vencedor Está Só, de Paulo Coelho (Editora Agir, 400 páginas)

O chiste se aprofunda, assim como a ostentação. Ao invés de usar a fórmula usual de incluir discretamente uma minibiografia no miolo do livro ou em uma orelha, ela também está na quarta-capa, onde se lê que “Paulo Coelho nasceu no Rio de Janeiro em 1947. Estrou na literatura com ‘O Diário de um Mago’ (1987) e é hoje um dos escritores mais lidos do mundo, com 100 milhões de livros vendidos em mais de 160 países. Embaixador da ONU e membro da Academia Brasileira de Letras, é detentor de mais de 60 prêmios. ‘O Vencedor Está Só’ é seu décimo segundo romance”. Percebam o destaque dado aos números, prêmios e títulos. Mais do que uma biografia, é uma aula magna de como aplicar a Teoria do Medalhão.

Passando da capa para o miolo, o que dizer da trama em si? Esse romance pertence a fase em que Paulo Coelho cansou de ser sexy e ser mago e decidiu ser sério, resolveu se tornar um escritor com consciência social, discutir o mundo para além, ou aquém, do universo da magia, das parábolas reconfortantes e viagens mirabolantes. Pretendeu colocar os pés no chão, usando lustrosos sapatos de marca, claro. E o resultado? Paulo Coelho conseguiu fazer “uma fotografia do mundo em que vivemos?” Seria um exagero afirmar que sim. O que não é nenhum demérito, considerando que as milhares de páginas da obra de Balzac só conseguiram registrar uma parcela da vida francesa, James Joyce só pôde refletir sobre determinados aspectos da existência irlandesa e Machado de Assis limitou-se ao Rio de Janeiro que conhecia. Fotografar a totalidade do mundo em que vivemos nem a NASA conseguiu, só pegou o lado iluminado. Se duvida, pergunte para o Caetano.  

Em todo caso, a trama de “O Vencedor Está Só” funciona relativamente bem. Há algum suspense e os dramas pessoais dos personagens, embora inapelavelmente bidimensionais, geram certo interesse mórbido. O que mais incomoda é a personalidade inverossímil do protagonista masculino, Igor, o tal vencedor do título: não creio que um bilionário russo, que certamente teve que fazer muito serviço sujo para acumular seus bilhões, possa ser tão bonzinho, compreensivo, bem-intencionado e que sofra por amor. Mas o que menos importa no livro é seu enredo. A trama em si não é muito diferente da que encontramos em centenas de livrinhos de bolso vendidos em bancas de jornal. O que importa é o pano de fundo. É nele que Paulo Coelho mirou e acertou com sua beretta literária.    

Paulo Coelho, observado pelos paparazzi, sorri satisfeito com seu melhor trabalho I Foto: Denis Makarenko /Shutterstock

Podemos ter dúvidas se Paulo Coelho consegue fazer chover, ficar invisível ou que viu um anjo, mas ninguém pode duvidar de sua experiência com o universo dos FFF, finos, fofos e famosos. Desde a década de 1960, atuando como compositor, frequenta ambientes apinhados de celebridades. Nacionais até então. A partir da década de 1980, com o sucesso de sua carreira literária, circula por salões internacionais. Sabe muito bem como funciona a fogueira das vaidades nos círculos superexclusivos, acessíveis apenas aos VIP’s do primeiro escalão, onde não adiantava ser amigo do Romário ou, agora em 2021, ser amigo do Neymar.

Em “O Vencedor Está Só” Paulo Coelho usa sua experiência para descrever, ainda que com certo romantismo, disputas de ego, tentativas desesperadas de alpinismo social, o medo permanente de perder status e privilégios, testes de sofá, talento sendo suplantado pelo QI dos bem indicados, disputas para saber quem tem o iate maior e coisas do tipo. Paulo Coelho finalmente decidiu acatar o primeiro conselho de toda primeira aula de toda oficina de escrita criativa: escreva sobre o que conhece. Isso fez toda diferença. Deu fôlego para sua literatura. Igor pode ser inverossímil, mas o ambiente por onde ele circula não é. Paulo Coelho pode não ter conseguido fazer “uma fotografia do mundo em que vivemos”, mas, sem dúvida, fez um bom retrato da mesquinhez dos bastidores do Festival de Cinema de Cannes.

Mais do que isso, Paulo Coelho conseguiu fazer uma bela foto de si mesmo, de sua participação neste mesmo mundo que descreve e denuncia. Pode haver autoironia melhor? A prova está na contracapa do livro. O Mago está rindo. De você, de mim, de todos que estão fora do interesse das lentes dos paparazzi. Não se ofenda, a vida é assim, o vencedor fica com as batatas. Aliás, pode se ofender, não importa. O fato é que Paulo pode. O Coelho venceu.