Charles Baudelaire: 200 anos. Para não dizer que não falei das flores (do mal)

Charles Baudelaire: 200 anos. Para não dizer que não falei das flores (do mal)

É quase impossível olhar para o calendário (9 de abril) e não se deixar tocar: 200 anos de nascimento do celebrado “poeta maldito”, Charles Baudelaire. Ao citar o vate, vem imediatamente à memória a sua produção máxima: “As Flores do Mal”. A obra que para muitos inaugurou a modernidade literária ao romper com as formas clássicas do verso e com os cânones literários vigentes.

E você, caro leitor, deve estar se perguntando: o que isso tem a ver com a música de Geraldo Vandré? Explico: quando da publicação, em Paris, de “As Flores do Mal”, em 1857, Baudelaire foi processado, vilipendiado, e o livro teve que ser recolhido. A alegação: ofensa à moral pública. A edição seguinte, publicada quatro anos depois, teve que suprimir seis poemas. Ou seja, o poeta foi censurado e perseguido pelo establishment.

Agora, creio, fica mais fácil ligar os pontos. Vandré também teve a sua canção “Caminhando” (ou Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores) silenciada das rádios de todo o país, após ficar em 2º lugar no Festival Internacional da Canção, em 1968. De cantor popular de sucesso, passou para a condição de “maldito’. Para não ser preso, torturado, o cantor teve que se exilar. Mas a sua canção tornou-se hino de resistência ao Regime Militar.

Em tempos de conservadorismo, repressão, limitação das liberdades individuais e censura explícita, falar até mesmo sobre flores pode se constituir um ato perigoso, temerário e, também, subversivo. Mas não nos enganemos sobre o pano de fundo que motivou tais ações, tanto lá (França) quanto cá (Brasil), foi um só: tolher a liberdade de criação e de expressão artística.

Mas será que Vandré, quando completar dois séculos do seu nascimento, ainda será lembrado? Só o tempo dirá. O fato é que os meios literários em todo o mundo celebram a efeméride de Baudelaire. O outrora maldito não foi de todo reabilitado. Muitos “puristas” continuam olhando de esguelha para os seus poemas. Sinal de que não foi totalmente absorvido por parcelas da sociedade que se autoproclamam “bem pensante.” Pontos para Baudelaire.

Charles Baudelaire, que escandalizou a sociedade burguesa, vivia em paraísos artificiais, foi censurado, perseguido e, quase um século depois, foi reabilitado

Mais de um século e meio depois da publicação de “As Flores do Mal” a obra continua potente, marcante e até hoje causa certo estranhamento, isso depois de ter influenciado luminares das letras como André Gide, Marcel Proust, James Joyce e Thomas Mann. Não é pouca coisa. O enfant terrible entrou com todos os méritos para o panteão dos maiores escritores do século 19, período marcado pela revelação de tantos gênios.

Toda a poesia de tendência simbolista do final do século 19 bebeu diretamente na fonte baudelairiana. Os rebeldes e inconformados se identificaram com ele, a exemplo de Lautréamont, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Quase um século depois (em 31 de maio de 1949) da publicação de “As Flores do Mal” a Corte de Cassação na França reabilitou o poeta da terrível “anomalia” que havia cometido. Fizeram justiça — ainda que tardia — para com o maior poeta do país.

Cabe aqui um breve parêntesis: no 350º aniversário da morte de Galileu a Igreja Católica também reconheceu o seu erro por tê-lo condenado (em 1633) pela defesa do heliocentrismo. Digamos que a Corte de Cassação francesa foi “um pouco” mais célere no seu mea culpa que a Igreja Católica.

Um dos tradutores de Baudelaire no Brasil, Jamil Almansur Haddad, sublinhou no Prefácio de “As Flores do Mal” (1957) que o poeta, traumatizado com as perseguições que sofreu, chegou a fazer algumas concessões à sociedade burguesa, inclusive, chegou a dizer que “é preciso agradar aqueles à custa de quem se vive”.

Quanta sinceridade no mar de hipocrisias. Carregado de ironia, Haddad observa: “…nos seus ‘Paraísos Artificiais’ há momentos de condenação ao vício [grifo do autor], que correspondem a meros salamaleques ao burguês, verdadeiros álibis, encravados como pedras no meio do caminho, corpos estranhos, de que o poeta semeava as suas considerações, argumentos para a absolvição vindoura…”

E por falar em brasileiros, o poetinha Vinicius de Moraes não deixou de saudar Baudelaire, quando rabiscou: “Poeta, um pouco à tua maneira/ É para distrair o spleen/ Que estou sentindo vir a mim/ Em sua ronda costumeira.” E conclui o seu soneto: “Como passou depressa o tempo/ Como mudou a poesia/ Como teu rosto não mudou!” O que mudou foi a percepção que se tinha do seu gênio.

Voltando ao ponto. O renomado crítico suíço, especializado em literatura francesa, Marcel Raymond, na sua consagrada obra “De Baudelaire ao Surrealismo”, não hesita em afirmar: “Há hoje uma concordância geral em considerar “Les Fleurs du Mal” como uma das fontes vivas do movimento poético contemporâneo”.

Ao analisar a ambivalência na obra do poeta, o crítico tece o seguinte comentário: “Este profundo sentimento das relações por muito tempo insuspeitas entre o mais elevado e o mais baixo, entre as exigências do inconsciente e as aspirações superiores, numa palavra, esta consciência da unidade da vida psíquica é uma das mais importantes revelações da poesia de Baudelaire”.

As contradições da vida moderna foram captadas pela poética do autor, que não deixa de registrar nos seus versos, tal qual um cronista, as antíteses que o perseguiam: gozo e dor; amor e ódio; céu e inferno; miséria e opulência; perversão e sublimação. Tudo envolto sob uma espessa camada cinzenta de tédio. É por isso que nas primeiras linhas de “Voyage”, Baudelaire registra: “No limite do desconhecido para encontrar o novo”.

Raymond também lança luzes para a compreensão da poesia baudelairiana quando crava: “…[A poesia] revela-se muito menos sentimental e muito mais claramente ‘psíquica’ do que a dos primeiros românticos; dirigindo-se menos ao ‘coração’ do que à ‘alma’ ou ao ‘eu profundo’ ela quer comover, mais além de nossa sensibilidade, regiões mais obscuras do espírito”.

Mas quais eram essas regiões profundas que o poeta queria penetrar? Ele, que também era crítico de arte, ao escrever sobre Delacroix, revela muito de si, e deixa entrever uma filosofia própria: “Todo o universo visível não é senão um depósito de imagens e de signos aos quais a imaginação conferirá um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que a imaginação deve digerir e transformar”.

Para que fique mais claro vamos tomar, por exemplo, o terceiro poema em prosa da sua obra póstuma “O Spleen de Paris” (1869), que se chama “A Confissão do Artista”, em que nas linhas finais ele registra: “…Ah! Deve-se eternamente sofrer, ou do belo eternamente fugir? Natureza, feiticeira impiedosa, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Cessa de atiçar meu desejo e meu orgulho! O estudo do belo é um duelo no qual o artista grita de pavor antes de ser vencido”.

Flores do Mal, de Charles Baudelaire (Penguin, 656 páginas)

Exercitando-se um pouco mais sobre a teoria do ato de imaginar, Baudelaire registra em 1859, em “Curiosités Esthétiques”, que a imaginação é uma elaboração do intelecto. “Foi a imaginação que ensinou aos homens os valores morais da cor, forma, som e perfumes. No começo do mundo, a imaginação criou a analogia e a metáfora. A imaginação decompõe toda a criação segundo leis que provêm do mais profundo interior da alma, recolhe e acumula as partes e cria um mundo novo, e até mesmo um novo reino da experiência sensorial.”

Em outra obra, “Ensaios sobre Edgar Allan Poe” ele manifesta a sua grande admiração pelo escritor norte-americano, que para alguns beirava a obsessão. Na verdade, havia uma grande afinidade, seja no plano da vida atormentada, quanto no plano do ideal estético. Tanto assim que Baudelaire faz o seguinte julgamento: “Edgar Poe, bêbado, pobre, perseguido, pária, agrada-me mais que, calmo e virtuoso, um Goethe ou um W. Scott. Direi de bom grado dele, e de uma classe particular de homens, o que o catecismo diz de nosso Deus: ‘Ele sofreu bastante por nós’”.

Baudelaire também sofreu, assim como Poe; no final da vida, passou por terríveis dificuldades financeiras. Torrou toda a fortuna que havia herdado do pai em bebidas, narcóticos e mulheres. Quis respirar novos ares, deixou Paris, e mudou-se, em 1864, para Bruxelas. Não foi uma boa ideia. Frustrou-se. Sofreu uma paralisia e regressou a Paris, onde faleceu em 1867. Viveu e morreu como “poeta maldito”, como se ostentasse na lapela uma delicada flor (do mal).

Para dar uma ideia (pequena) da potência poética de Baudelaire, vou transcrever um dos poemas (entre os seis) que foi censurado, que se chama “As Metamorfoses do Vampiro”. A tradução é de Jamil Almansur Haddad. Fala “maldito”:

As Metamorfoses do Vampiro
Ela de sua boca de cereja e de asa,
Torcendo-se assim como a cobra numa brasa,
E os seios a moldar à dura barbatana
Do espartilho, falou impregnada de havana:
— “Trago os lábios molhados e possuo a ciência
De perder por um leito a minha consciência.
Eu seco todo choro em meus seios divinos,
E faço rir os velhos tal qual os meninos.
Eu substituo, aos que possam ver-me sem véus,
O plenilúnio, o Sol, as estrelas e os céus!
Eu sou tão douta na volúpia, caros sábios,
Quando um homem afogo no mar dos meus lábios,
Ou então quando entrego às mordidas meu busto,
Tímido e libertino e frágil e robusto,
Que os anjos sobre o meu desmaiado colchão
Iriam ter em mim a sua danação”.

Quando ela me sorveu dos ossos a medula,
E tão languidamente a buscou minha gula,
Viu o beijo de amor que nela final pus,
Flanco viscoso de odre a transbordar de pus!
Meus dois olhos fechei, num susto de fobia,
Depois quando os abri à viva luz do dia,
Junto a mim, em lugar do manequim tão langue,
Que ali estava a estuar da provisão de sangue,
Tremeu de um esqueleto à visão tão daninha,
Ainda a emitir os sons de distante ventoinha
Ou de triste varão que prede a tabuleta
Que oscila ao vento pela noite fria e preta.