Como um animador de circo vira presidente

A massa humana é uma força gravitacional que arrasta tudo para baixo. Qualquer cálculo de sucesso, no mercado, deve ter em vista que a maioria das pessoas tem uma inteligência bem rudimentar e só entende o que é básico. Assim como nenhuma poderosa marca existe sem ajoelhar-se ao Deus Massa, também nenhum ídolo, astro ou líder sobrevive sem prestar-lhe culto regular. Isso facilita enormemente, no meio político, o êxito de líderes demagógicos e populistas. É muito fácil ludibriar esse deus oligofrênico; evidências dos últimos quatro anos apenas confirmam que basta não ter escrúpulos éticos nem morais. Ele acredita nas piores besteiras, e delinquentes aptos a se aproveitar dessa ingenuidade existem aos montes.

De acordo com o documentário norte-americano “Trump: Um Sonho Americano”, produzido por David Glover e Mark Raphael, lançado em 2017 e disponível pela Netflix, o agora ex-presidente dos Estados Unidos foi uma dessas pessoas. É baseado em depoimentos tanto de amigos quanto de desafetos do magnata norte-americano. Donald Trump cresceu no ramo imobiliário às custas de isenções fiscais concedidas pelo município de Nova York, nos anos 1970. O último lance de sua escalada ao poder deu-se em 2017, quando tornou-se inquilino da Casa Branca, depois de conseguir uma proeza inimaginável: a indicação à presidência da República.

O quarto episódio do referido documentário mostra os bastidores desse processo, para o qual Trump nem tinha interesse autêntico. Mas ele tornara-se popular e gostava de grandes desafios pessoais, baseadas numa filosofia rasteira: “Eu entendo que tudo é um jogo. O mundo é feito de pessoas com instinto assassino”. São palavras suas, extraídas de sua primeira entrevista à TV, para Rona Barrett, nos anos 1980. Para Donald Trump, você é o ganhador ou o perdedor, e nisso resume seu ideal de candidato a homem público. Não existiu, portanto, nenhuma motivação superior, nenhuma aspiração coletiva ou causa maior do que o próprio umbigo, para construir seu edifício mais ambicioso. Existiu apenas um indivíduo motivado por esse “instinto assassino”; apenas, e tão somente, competição.

Donald Trump era um homem da iniciativa privada, enquanto parte do eleitorado norte-americano começava a mostrar descontentamento com os “políticos tradicionais”. Ele percebeu isso quando o amigo e campeão de vale-tudo (sintomático!) Jesse Ventura conquistou o governo do estado de Minnesota, em 1998. Jesse também era um outsider; também se filiou a um partido insignificante, acusou os adversários de caixa 2, brigou com a impressa e prometeu acabar com a corrupção, falando bobagens pelos cotovelos. Porque o Deus Massa gosta disso, e Jesse Ventura tornou-se o candidato “antissistema”. Bronco de tudo, acabou sendo eleito com 37% dos votos, e Trump, o Aprendiz de Incitator (Incitator era o cavalo que o imperador Calígula quis transformar em senador romano), foi visitá-lo. Voltou a Nova York disposto a reconsiderar a presidência dos Estados Unidos.

A tentativa de 2000 não se viabilizou porque Trump ainda não tinha uma legenda competitiva. Daí sua transferência para o conservador Partido Republicano. Já era bem conhecido em todo país por causa da televisão, onde a partir de 2003 apresentara o Reality Show “O Aprendiz”. Corria os anos 2000 quando Peter Constanzo, diretor de marketing digital, apresentou o Twitter a Trump. Ele agora era popular, tinha um partido e também uma fantástica ferramenta de trabalho, à mão, além de um slogan copiado de Ronald Reagan. Mas faltava-lhe, ainda, a plataforma eleitoral.

Ia dizer o quê para aquele eleitorado inculto, frustrado e conservador, cansado dos políticos tradicionais? Evidentemente, bobagens. Para tornar-se presidente, não cometeria o erro de falar sério, a apoiadores tão rudes. O Deus Massa gosta de coisas óbvias e ruidosas, que se resumem a, no máximo, 280 caracteres. Tão bronco quando o amigo Jesse Ventura, Trump acatou o conselho de seu publicitário Roger Stone, para quem “As pessoas não lembram o que você diz, mas como diz”.  Então, inventa-se uma besteira qualquer e dê a ela muita ênfase. É o suficiente para gerar urros, aplausos e, potencialmente, criar uma legião de fanáticos, que o seguirão até à morte.

A primeira dessas besteiras foi cobrar do então mandatário Barack Obama sua certidão de nascimento, nas eleições de 2011. Isso teve uma enorme repercussão popular; afinal, “esse cara é nosso presidente, e de onde ele veio?”. Em um programa de auditório na presença de Trump, a atriz Whoopi Goldberg lembrou, com indignação, o componente racista dessa cobrança sem pé nem cabeça. Por que não discutir o que realmente importa? Trump estava se linchando para isso: seu papel era de animador de circo. E por que um animador de circo frustraria o Deus Massa, se ele gosta é de polêmica vazia?

Mesmo assim o republicano perdeu a eleição, voltando á baila em 2015. A bobagem da vez surgiu de uma comunicação telefônica, outra vez baseada no Twitter. Nessa comunicação estavam envolvidos três homens interessados em fama e poder, e provavelmente desprovidos de qualquer interesse público: Donald Trump, seu mentor Roger Stone e um assessor chamado Sam Nunberg, para quem o Twitter correspondia a um “grupo focal” (os 140 caracteres, à época, que bastavam).

Nos retweets de Trump apareceu uma ideia simples e raivosa que Nunberg partilhou com Stone, que a apresentou ao então candidato: “E se propusermos que ele diga: ‘Eu vou construir um muro e vou fazer o México pagara por ele?’” Surgiu assim a ideia do “impenetrable wall”, sem responsabilidade ou convicção, como quem simplesmente faísca uma peça de marketing para uma parcela importante do eleitorado conservador. Se colar, colou. E colou! O Deus Massa acredita em qualquer besteira, como o Kit Gay ou a Terra Plana. É o que dá Ibope.

Em 2016 Trump acabou sendo eleito presidente, e o saldo dessa aventura de umbigo nós já conhecemos. Durante sua breve administração ele tornou-se líder mundial da extrema-direita, ao negar as evidências científicas do Aquecimento Global e da Covid-19 (em seu governo os Estados Unidos contabilizaram o maior número de mortos pela doença, muito acima de países quatro vezes mais populosos e mais pobres, como China e Índia); combater ferozmente a saúde pública, estimular a divisão racial crônica no país, fechar os olhos para a ditadura comunista norte-coreana, atacar a democracia e a cooperação internacional e insuflar a maior insurreição popular da história dos EUA pós-colonial. Donald Trump tornou-se o quarto presidente norte-americano não reeleito, e o primeiro, entre 45, a sofrer duas vezes o impeachment.

Para o gáudio do Deus Massa, que adora fanfarrões.