Uma verdade indigesta: olhando de 2020, seria melhor se Aécio Neves tivesse ganhado em 2014

Uma verdade indigesta: olhando de 2020, seria melhor se Aécio Neves tivesse ganhado em 2014

Fotografia: Adauto Nascimento / Shutterstock

Após dois mandatos de Lula e um de Dilma, o Brasil passava por uma grande polarização nos idos de 2014. De um lado, os “mortadelas”, como eram chamadas as pessoas que militavam em favor de uma esquerda progressista no país — em referência à distribuição de sanduíches com esse recheio em suas manifestações. De outro, os “coxinhas”, apelido também pejorativo, dado aos que faziam oposição aos governos de esquerda — uma sátira contraposta para ridicularizar os que saíam às ruas com a camisa da Seleção Brasileira. Os dois estereótipos ideológicos transformavam as rodas de conversa e as redes sociais em campos ferozes de hostilidade e controvérsia. Quem saísse vencedor da eleição daquele ano teria a missão de pacificar um país divido ao extremo. O que se viu, porém, foi o fermento que deu azo ao pior cenário possível para os rumos da nação.

Dilma conseguiu se reeleger com 54 milhões de votos. De imediato, surgiram as imagens que recortavam o Brasil dividido em norte e sul, em vermelho e azul. O lado perdedor, inconformado, iniciou um movimento de contestação do resultado das eleições, determinado a não aceitar a derrota. O placar apertado, de 51 contra 48%, favorecia o surgimento de teorias conspiratórias acerca da idoneidade da apuração das urnas eletrônicas. A explosão de aplicativos cibernéticos de troca de mensagens instantâneas favorecia enormemente a propagação de grupos dispostos a retirar a presidente eleita a qualquer custo. Desse clima, surgia o espantalho do comunismo, um fantasma que era hasteado como bandeira para incutir no brasileiro o medo de o país virar uma Venezuela. As trincheiras se formaram.

As vitórias sociais do Partido dos Trabalhadores ao longo dos anos são algo indiscutível. Muitos avanços, no entanto, eram encarados como afronta por aqueles que discordavam das políticas implementadas pelos dirigentes do então maior partido da nação. As reações à implantação das cotas raciais, das leis de incentivo à cultura e do programa Bolsa Família demonstravam que a ignorância sobre a profundidade de tais medidas demandava uma confrontação mais dialógica e esclarecedora — e não baseada em provocações e deboches. Em alguns veículos progressistas da mídia, o tom de soberba era indisfarçável. Como tudo que era oposição levava a pecha de fascista, o balaio de gatos deu origem a movimentos de rua reacionários que conseguiram, aos poucos, ter mais adeptos que os da própria esquerda. E o resultado disso foi o impeachment de 2016, tendo como alegada motivação as pedaladas fiscais. Mas não era aquele o motivo. E todos os lados sabiam.

Uma onda de ódio pela política tradicional levou a população a crer que seria necessário eleger um ícone que quebrasse o sistema. Os seguidos escândalos de corrupção foram fundamentais para que se criasse uma mística de que o universo dos homens públicos era podre e que apenas um super-herói, incorruptível, poderia ser a força motriz necessária para recolocar o governo nos rumos da boa ordem. Palhaços foram eleitos com discursos de brincadeira e muitos aproveitadores souberam aparentar ter as características exigidas pelos insurgentes indiferentes. Nesse meio, um político velho de guerra, com quase 30 anos de vida pública, surgiu com suas “mitadas” satíricas e caricatas, rapidamente tomando conta do imaginário popular e dos grupos de “whatsapp”. E em 2018, o improvável venceu. A sequência é história indigesta. E trágica.

A verdade é que tudo teria sido diferente se Aécio tivesse vencido aquela eleição. Ele não seria o responsável por acalmar ânimos ou unir o país sob uma única bandeira — bem longe disso. Mas a sua vitória seria um respiro para aqueles que já não encaravam com bons olhos mais tempo de PT no governo e esperavam que algo diferente fosse capaz de resolver os problemas de cinco séculos. Quebrariam a cara, mas seu ego estaria satisfeito. Certamente seria Aécio a sofrer o impeachment — e por causas bem mais plausíveis, diga-se de passagem. Sua derrota, no entanto, representou um trauma insuperável, que permitiu que aproveitadores pudessem tomar conta dos rumos do país.

Em 2020, com pandemia e sem direção, o Brasil sente saudades da época em que a cizânia se resumia a “coxinhas” contra “mortadelas”. E agora não há lanchinho ou conversa na paulista que conserte anos de intransigência e cegueira.