Quanto Custa um Elefante?, de Marcelo Mirisola

Quanto Custa um Elefante?, de Marcelo Mirisola

Ter um demônio sob domínio e transformá-lo em fonte inesgotável de riqueza é um mito que se perde nas noites do tempo. Vem de épocas bíblicas. As sagradas escrituras alertam: “O fim dessas pessoas é a perdição; o deus deles é o estômago; e o orgulho que eles ostentam fundamenta-se no que é vergonhoso; eles se preocupam apenas com o que é terreno”.

Essa ideia agigantou-se no imaginário popular, no período medieval, com o povo sofrido, entre as pressões do cristianismo e a exploração ferrenha do senhor feudal. ‘Engarrafar o diabo’ surgiu como válvula de escape para pessoas mais sofridas, quer pela situação de penúria real, quer por simples hedonismo, ante o espaço intransponível entre o desejo e o objeto desejado.

Ocorre-me que talvez seja semelhante à ideia do Gênio da Lâmpada da mitologia árabe. Só que o gênio ocidental é mais punk. O Gênio da Lâmpada realiza o desejo do necessitado e dá-se por satisfeito pela própria alforria. O diabo ocidental requer assombrosa reciprocidade. Normalmente, a alma do pactário, como diz Guimarães Rosa.

Quando eu ainda trabalhava na roça, capinador de arrozal, o senhor Daniel, de voz trêmula, já idoso e também braçal, e que ostentava orgulho, um pouco acanhado, de ser bruxo ou feiticeiro, um dia, deu-me a receita de como se criar um diabinho escravizado na garrafa. Ele me disse que só não possuía um porque conseguiu a receita quando já estava idoso, com a carne já fria e com poucos desejos. Mas eu, na condição de jovem, deveria subjugar um diabo e possuir uma vida de euforia e proveito.

Quanto Custa um Elefante?, de Marcelo Mirisola (Editora 34, 127 páginas)

O velho Daniel disse-me que a receita era simples. Precisava castrar um frango e convencê-lo de que era galinha. Colocá-lo para cuidar dos pintinhos recém-nascidos. Até que, convencido de sua condição de fêmio, deixaria cobrir-se pelos galos mandões do terreiro. Após atingir essa condição, haveria de pôr alguns ovos. Uns poucos. Seriam ovos diferentes e facilmente reconhecíveis. Esféricos, bem pequenos. Não seriam brancos, nem roxos, nem verdes. Seriam pretos da cor da noite escura. O candidato a ter o diabo engarrafado chocaria no sovaco um ovo desses. Sentiria febres, calafrios e delírios durante o choco, porque o demônio estaria engendrando seus poderes. Teria que aguentar firme, sem retirá-lo um instante sequer. No vigésimo terceiro sol, o ovo eclodiria e de lá nasceria um pintinho com feições demoníacas. Em seguida, só enfiar a criatura numa garrafa transparente, arrolhá-la bem com cortiça. E começar a fazer os pedidos pra se tornar rico, ter todas as mulheres mais belas, os iates mais suntuosos e todas as coisas do mundo que fosse capaz de desejar.

Essa figura mítica antiga, com reforço medieval, ganhou status de personagem da alta literatura com Goethe, Mann, Guimarães Rosa, dentre outros.

Em seu último romance, “Quanto Custa um Elefante?”, Marcelo Mirisola entra na seara demoníaca, para buscar a satisfação de seus desejos, embora já disponha de um apartamento meia boca, grana no banco, herança pela morte do pai, uma moto Harley-Davidson e uma namorada sazonal, com o nome sintomático de Ruína. Para a ereção não precisava do capeta, uma vez que resolvia o problema da paumolescência com doses elefantinas de Cialis.

Mas desejava força vital para usufruir com vigor e fúria todo o desejo hedonista de macho-fim-de-linha, complexado com sua própria homência, pois até o pai, no leito de morte, chamou-o de “fancho”.

No tratamento dispensado ao tema, Marcelo faz um mix saboroso de tragédia, humor, escracho. Amor, paixão, loucura e demonologia. Um biscoito fino e raro, nos dias de hoje, em que é imenso o preconceito contra a inteligência, o autor condimenta o escatológico e o poético, o divino e o demoníaco, o sério e o gaiato, o real e o alucinado. Uma loucura de livro. Li numa sentada e fiquei com pena de ter acabado a leitura tão cedo.

O personagem, que deve ser um alter ego do próprio autor, pois o nome é até o mesmo, busca auxilio espiritual, ou melhor, demonial, no terreiro da Mãe Valéria. Uma embusteira tão desgraçada que já pedi o endereço dela ao Marcelo, para eu passar longe. Pois bem. O personagem vai com a intenção de vender, para entrega futura, a própria alma. No entanto, sente que Lúcifer, o nome pelo qual o diabo se apresenta a ele, agora não presta mais serviços para receber a alma como derivativo futuro. Tudo à vista e em elefantes. Seis elefantes pelo serviço tipo “cabelo, barba e bigode”. Daí, a grande pergunta: quanto custa um elefante?

Na realidade, essa pedida, só uma lábia para envolver o freguês. Em seguida, mudou a conversa, alegando que a cota de elefante já estava completa e que agora o pagamento, apenas em dinheiro vivo. Quando Marcelo escuta a pedida em grana viva e confere o saldo no banco, seu dinheiro dá menos da metade. O jeito, negociar.

Achei o livro, além de inteligente, politicamente incorreto, sacana, gostoso de se ler, uma grande metáfora de nossos dias, em que o país se tornou uma sucursal do inferno e, mesmo assim, o povo quer servir-se da ração, no cocho do tinhoso, e entregar a alma para o senhor do reino soturno.