Eu me recuso a aceitar a extinção do shake-hands

Eu me recuso a aceitar a extinção do shake-hands

Certeza, certeza não tenho. Mas tenho a impressão de que a primeira vez que vi a expressão shake-hands como algo utilizado assim de forma corriqueira em português foi em “Os Maias”. O grande Eça, ali representado pelo seu alter ego João da Ega, usou o shake-hands algumas vezes para simbolizar apertos de mãos entre amigos.

Nessa época estranha em que vivemos, os cuidados sanitários têm substituído o shake-hands por irritantes impactos de cotovelos, ou mesmo soquinhos descolados com as extremidades dos punhos.

Não. Eu não sou contra os cuidados sanitários. Sou a favor de que permaneçam até o fim da pandemia.

Mas me parece que a turma descolada que gosta tanto de glorificar o “novo normal” (arghh!!) tem se identificado com a possibilidade de que, mesmo depois do fim dessa época insana, não tenhamos uma volta do “velho normal” (arghh!! ao quadrado).

Aqui, então, me valho do shake-hands como um elemento simbólico para externar minha preocupação com esse estado de coisas, porque ele, de fato, representa muito do que eu entendo como parte dos substratos da vida cotidiana que nos ajudam a não enlouquecer.

É claro que os orientais já têm, há milênios, aquele cumprimento muito mais higiênico, manifestado pelo abaixar de cabeças em sincronia entre os convivas, mas, cá entre nós, aquilo é muito sem graça. O bom mesmo é um belo aperto de mãos. Meu pai, aliás, me ensinou, na adolescência, que quanto mais apertado o cumprimento de mãos de um sujeito, mais se pode confiar nele. Desde então, procuro dosar meus shake-hands para que o aperto da confiança não chegue a quebrar os ossos dos meus amigos.

Junto com o shake-hands temos outras práticas que podem ser classificadas como à beira da extinção nesse mundo moderno em que os campeonatos mundiais de empatia têm sido decididos sempre a favor daqueles que sabem exercer com mais eficiência seus patrulhamentos ideológicos, os quais, quanto mais acompanhados de boas doses de cerceamento da liberdade de expressão do alheio que pensa diferente, melhor.

Assim temos assistido aos entusiastas de uma possível extinção dos bares, já que gente mal-humorada não vê sentido em pessoas se sentando para travar conversas descontraídas ao som de boa música e cerveja com petiscos. É também no bar que os confrades mais íntimos acabam soltando anedotas, essa “prática repugnante que só serve para despertar o lado mau de rir dos defeitos dos outros”.

É como se essa gente dividisse Shakespeare em dois: um dramaturgo do bem, que só conta dramas e tragédias; e um dramaturgo do mau, que faz gracejos com as peculiaridades alheias, o Shakespeare das comédias, que ri do devedor que pode ter um pedaço de carne cortado das suas costas.

É, aliás, esse maniqueísmo bobo que tem tomado conta do mundo que faz surgir no debate público bobagens como “lugar de fala” e fobias das mais variadas, como se todas as pessoas fossem monocórdicas e obrigadas a terem a mesma opinião e a gostarem invariavelmente das mesmas coisas.

Não, senhores: não gostar disso ou daquilo, ou dele ou dela, não é nenhuma fobia. Preconceito é quando a expressão das preferências pessoais deságua em desrespeito. É importante avisar aos navegantes da patrulha: não há como policiar os pensamentos das pessoas. George Orwell escreveu sobre isso, e a impressão da distopia que ele nos legou em “1984” não foi boa.

Sobre o famigerado “lugar de fala”, imaginemos que Cervantes, por não ser louco, nem baixinho, não pudesse escrever sobre seu fidalgo Dom Quixote, tampouco sobre seu escudeiro Sancho Pança. Que Dante, por não ser pároco, não pudesse ter colocado tantos padres e bispos no inferno da sua comédia. Que Castro Alves, por não ser negro, não pudesse lastimar as desumanidades de seu Navio Negreiro. Ou que o Eça, por não ser mulher, não pudesse contar a canalhice que o Padre Amaro fez com Amélia. Ou que George Lucas, por não ser uma criatura peluda, não pudesse ter colocado Chewbacca em tantas situações cômicas.

Devo parar, porque essa lista poderia ficar quilométrica, mas o fato é que o embotamento ideológico que os oráculos da sociedade moderna nos tenta impor nos dias de hoje, se triunfar, vai acabar engessando a humanidade e a sua capacidade de criar, de se divertir, de poder transitar entre o bem e o mal sem que seja necessariamente estereotipado em uma ou outra categoria.