100 mil mortos: um Maracanã lotado de lágrimas

100 mil mortos: um Maracanã lotado de lágrimas

Tragédias, infelizmente, acontecem. Ao longo da trajetória humana, fomos obrigados a nos acostumar com inúmeras delas, envoltas nas mais diversas circunstâncias. Algumas são realmente inevitáveis; sobre elas, o único poder que temos é o de refletir — e lamentar. Outras, no entanto, podem ser contidas e até antecipadas, principalmente quando há possibilidades reais de controle sobre seus desdobramentos. A pandemia do coronavírus devastou o mundo com seu surgimento repentino e sua propagação meteórica. No Brasil, completados cinco meses de convivência com a doença, chega-se às 100 mil vidas perdidas. E há muito o que se falar sobre essa tragédia anunciada.

Primeiramente, é preciso dizer que não há ação governamental que possa conter um vírus como esse, que se alastra como erva daninha e em progressão geométrica. Medidas políticas não são capazes de estancar a fulminante contaminação exponencial que perturba a paz da população e dos cientistas do planeta. Ainda assim, é praticamente consenso que as medidas de higiene pessoal, a utilização de máscaras e o distanciamento social são eficazes para reduzir a velocidade e amplitude de propagação da doença. Nesse sentido, uma atuação planejada, dedicada à proteção da população e obedecendo ao que a ciência indica e recomenda seria indispensável em um momento de crise como o que estamos vivendo. Não foi o caso do Brasil. No país, desde os primeiros casos, uma leva negacionista da gravidade e dos efeitos do vírus se disseminou e prejudicou intensamente a profilaxia por parte da população. Aqui, junto com o vírus, houve uma onda de desinformação deliberada.

A falta de seriedade do país no combate ao vírus é óbvia e ululante. No decorrer do surto, dois Ministros da Saúde foram trocados. Depois que Luiz Henrique Mandetta foi demitido e que Nelson Teich pediu exoneração, o país passou um longo período sem ministro titular na pasta. O lapso temporal é um recorde que não acontecia desde 1953. As pressões para a imposição de um protocolo de uso da hidroxicloroquina, remédio visto como salvador pelos governistas, foi fundamental para a efetivação do então interino gal. Eduardo Pazuello no cargo. Para piorar a situação, o governo se apegou a um plano controverso de isolamento vertical e insistiu na reabertura prematura do comércio. Isso motivou a decisão da corte de ratificar a competência concorrente de estados e municípios na adoção de medidas próprias de combate ao vírus. Contudo, o Executivo interpretou tal determinação como se retirasse seus poderes para atuar e passou a usá-la como escudo quando questionado sobre o crescente número de mortes no país, afastando a sua parcela de culpa para jogá-la, toda, sobre governadores e prefeitos.

Ao longo dessa trajetória, aliás, o presidente compareceu a diversas manifestações com aglomeração de gente — muitas das quais provocadas por ele próprio. Ignorando e desdenhando das recomendações da OMS, a quem sempre se referiu em tom crítico, saiu às ruas cortejando populares, com abraços e conversas próximas, na maioria das vezes sem máscara. Elegeu a cloroquina como remédio da esperança, intensificando a sua produção pelo Exército e divulgando em lives e aparições públicas a eficácia da droga “milagrosa”. O gesto emblemático de tirar do bolso a caixa do remédio e levantá-la como se fosse um troféu virou marca registrada de suas aparições diante de seu público. Como ocupante da cadeira mais importante da República, naturalmente seus atos e declarações serviram de espelho para boa parte da população nesse período. Seus erros e acertos — e suas consequências — serão avaliados pela história.

Diante dos embates entre os políticos sobre eficácias e ineficácias das medidas de proteção, o povo, principalmente sua parcela mais vulnerável, é quem sofre diariamente as consequências. O Brasil segue como segundo país a perder mais vidas para a pandemia, e ainda não é possível enxergar qualquer luz no fim do túnel. A chegada de uma vacina é probabilidade futura, carregada de incertezas, e a volta à normalidade se afigura um sonho distante. Diante do quadro alarmante de um ano terrível, a chegada aos 100 mil óbitos já é parte indissociável da história do país, que se apequenou ao preferir manter o foco na atribuição de culpas em vez de debater soluções dialógicas e construtivas.

Tragédias, realmente, são inevitáveis. Algumas, contudo, contam com uma forte contribuição da indiferença, incompetência, incredulidade e falta de seriedade. As deste tipo, como se vê, são as mais frequentes em nosso país desde 1500.

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