Simone de Beauvoir: Uma Vida

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir cometeram o desatino de apoiar o stalinismo, o comunismo criado por Stálin na União Soviética — que assassinou cerca de 30 milhões de pessoas (as pesquisas a respeito ainda são preliminares; só de fome, na Ucrânia, foram 4 milhões de indivíduos). Não só apoiaram, o filósofo e escritor e a escritora (por sinal, melhor prosadora do que o autor de “A Náusea”) justificaram o regime genocida do czar da Geórgia. Ao mesmo tempo, são figuras emblemáticas — até incontornáveis — do século 20. Tanto por aquilo que escreveram — Simone de Beauvoir se tornou a papisa do feminismo (“ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” é uma de suas frases-pensamentos mais célebres) e sua prosa memorialística chega a ser deliciosa (“Cerimônia do Adeus”, sobre a decadência física de Sartre, é um espetáculo, apesar da crueza das histórias e da narrativa) — quanto pela militância política. Eles sempre estiveram envolvidos com os acontecimentos da França e de outros países — pontificando sobre tudo e todos, atraindo a atenção da sociedade. Pode-se sugerir, inclusive, que Sartre foi um dos primeiros filósofos globais — uma verdadeira estrela, que, embora considerado feio e desengonçado, era tão cultuado quanto artistas de cinema e música. Tornou-se, até, um homem cobiçado por mulheres belas e, algumas, famosas. Era, dizia-se, um “fauno”.

Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir — Uma Vida (416 páginas), de Kate Kirkpatrick

Simone de Beauvoir e Sartre mantiveram, por um longo tempo, um relacionamento livre — com cada um tendo seus namorados e suas namoradas. A escritora não escondeu, por exemplo, que teve seu primeiro orgasmo com o escritor Nelson Algreen (a informação, divulgada pela escritora, teria descontentado o americano) e namorou Claude Lanzmann.

A fama de Sartre e Simone de Beauvoir não “escondeu” o imenso talento do escritor Albert Camus e do filósofo Raymond Aron. Camus, como escritor, tende a sobreviver como um gigante, ao contrário do casal (que precisa do reforço mais de militantes do que de leitores não engajados). A longo prazo, as críticas e interpretações de Aron mostraram-se mais sólidas. Por vários motivos, e talvez o principal deles tenha sido o fato de que Aron estava preocupado com a verdade, com os fatos, enquanto Sartre às vezes distorcia os fatos para produzir “novos fatos”. Para Sartre, assim como para Simone de Beauvoir, a verdade podia ser sacrificada no altar da política, da ideologia. O historiador britânico Tony Judt tem um livro seminal para quem quiser entender melhor o que se está dizendo: “Passado Imperfeito — Um Olhar Crítico Sobre a Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra” (há outro livro de sua autoria em que ressalta a importância de Camus e Aron e a decência ética de ambos).

Sartre e Simone de Beauvoir são figuras tão gigantescas (portanto, não meramente stalinistas), tão vivas no imaginário intelectual e político da Europa (talvez do mundo), que não podem ser descartadas. São interessantíssimas. Parecem, por vezes, personagens de literatura que escaparam de um livro de Dostoiévski — ou talvez de Stendhal — e se tornaram seres reais. Cabe devolvê-los à literatura? Quem sabe.

A Editora Crítica publica em português o livro “Simone de Beauvoir — Uma Vida” (416 páginas), de Kate Kirkpatrick. Trata-se de uma radiografia atualizada da vida e da obra da escritora — no caso, vida e obra têm uma profunda identidade — que entra para a minha lista de leituras de 2020 (claro que a obra fala também de Sartre, companheiro de jornada, e dos “desafetos”, como Camus). Quem leu sustenta que se trata de uma obra séria e não laudatória. Um de seus méritos é, frisam, tratar Simone de Beauvoir também como filósofa.