Abstinência deveria ser uma pauta íntima, e não governamental

Abstinência deveria ser uma pauta íntima, e não governamental

Não é segredo que no Brasil o carnaval é o ópio do povo, o eterno “pão e circo” ilusionista. Todos sabem. Ou pensam que sabem. Na verdade, ele está mais para uma válvula de escape que permite a quem vive massacrado, tão humilhado em seu dia a dia, se sentir — ou pelo menos, na melhor das hipóteses, tentar — igual a qualquer outra pessoa. É um tempo para se divertir, conhecer pessoas, viajar e esquecer um pouco os problemas cotidianos. E foi esse o período que nosso governo escolheu para dar início a uma exótica campanha pela abstinência sexual, numa história de dar inveja aos melhores enredos de escola de samba.

É bom explicar: não há críticas específicas à folia momesca neste texto, pelo contrário. A valorização do carnaval se dá justamente no ponto exato de intersecção com a necessidade da população de ter pelo menos um momento de alegria por ano; de se dar ao luxo de poder ser quem quiser, quando bem entender, nas ruas, com fantasias e amores livres. Às vezes, é preciso iludir o cérebro e fazê-lo mudar de ambiente, mesmo que de forma maliciosa, para criar um fluxo positivo que permita aguentar os encargos pesados que todo cidadão deste país tão bem conhece e mal suporta. Viva o carnaval!

Por um lado, o timing do governo ao adotar uma medida supostamente nova não poderia ser mais conveniente. O carnaval, espaço temporal propício a novas relações, descobertas e paixões meteóricas, é indiscutivelmente um período adequado para ações efetivas de combate a doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez prematura ou indesejada. Porém o que salta aos olhos é o objeto, e não o objetivo.

A ideia da abstinência como método contraceptivo não é novidade. O próprio governo aponta que países como os Estados Unidos e Uganda utilizam essa política como forma de tentar adiar a iniciação sexual e de prevenir a gravidez na adolescência. O cerne da questão está mesmo na falta de qualquer comprovação científica que confirme a eficácia do método. Pelo contrário: estatísticas norte-americanas demonstram sua total ineficiência como política pública. Segundo elas, não há mudança perceptível na iniciação sexual dos jovens decorrente da adoção dessa política, que tampouco afasta a gravidez precoce ou impede disseminação de doenças sexualmente transmissíveis.

Na realidade, a questão da abstinência deveria ser uma pauta íntima, e não governamental. Essa decisão deveria ser pessoal, ligada às escolhas de cada indivíduo com base em seu livre-arbítrio consciente. Principalmente em se tratando de jovens, apesar das boas intenções e do caráter nitidamente protetivo da campanha, há evidências científicas quanto à ineficácia da imposição. É mais do que óbvio que, justamente na fase da vida mais rica em descobertas e curiosidades, não será uma campanha do governo que vai impedir humanos com deficiência de cautela e excesso de hormônios de desbravar os meandros de seu corpo e os dos alheios. É, no mínimo, uma inocente insensatez.

Na película “La Mala Educación”, classificada pelo próprio diretor Pedro Almodóvar como um filme noir — porém com um forte caráter iconoclasta e de denúncia —, é apresentado um exemplo de como é falha a tentativa de imposição de preceitos morais e/ou religiosos, principalmente os de cunho sexual.  Nele, dois adolescentes vivem os amargores da repressão sexual impositiva em um internato localizado em um país ditatorial. Paradoxalmente, em um ambiente tão recluso, de dogmas católicos e regras rígidas, houve espaço para promiscuidades abusivas por parte dos clérigos e uma proibida paixão entre meninos. Nada pode ser mais esclarecedor e convidativo à reflexão.

Ao que parece, a medida do governo representa mais um vácuo de ideias que uma ignorância a respeito da quase inexistência dos resultados esperados. Em um país onde ainda existe um forte tabu quanto às questões sexuais, a repressão deliberada da exploração do próprio corpo soa como desnecessária e retrógrada. No fundo, a alegoria da moralidade acabará sendo mais uma vez motivo de piada, por prescindir da precisão e da seriedade necessárias. Para um governo, imiscuir-se na vida íntima dos cidadãos, ainda que menores de idade, deveria se restringir a disponibilizar informações úteis e adequadas para que estes possam entrar com segurança e responsabilidade no complexo mundo da libido. Não é o caso.

Para quem viveu a era autoritária no Brasil só resta lembrar, com saudades, da música de Caetano que decretava, contra tudo que o governo prezava então, que era proibido proibir. A quem vive a juventude agora, só resta esperar — ou, aos mais otimistas, esperançar — que as coisas mudem. E bom carnaval.