Quando tudo é fascismo, o autoritarismo se normaliza e se vitimiza

Quando tudo é fascismo, o autoritarismo se normaliza e se vitimiza

É comum associarmos acontecimentos do presente a fatos históricos passados. Quando se trata de distribuir rótulos, nossa memória parece sempre querer apontar para alguma solução já familiar, palpável e conhecida. Ao nos depararmos com algo extremo, é comum, pois, que recorramos a seu exemplo mais marcante, para logo usar em uma discussão. Chamar algo ou alguém a quem nos opomos fortemente de fascista, nazista ou de Hitler, por exemplo, é o que costuma ocorrer nesses momentos mais acalorados. É bom lembrar, contudo, que apelar para esse recurso fragiliza nossos argumentos e, pior, pode dar ares de vítima justamente àquilo ou àquele a quem desejamos combater. E isso é tudo o que eles querem e esperam.

Entender todas as peculiaridades do nacional-socialismo é algo complexo até mesmo para os mais minuciosos historiadores. Interpretar e traduzir seu conteúdo é tarefa das mais hercúleas. É possível, contudo, pontuar características marcantes, como a ideia de völkisch, o culto ao legado nórdico, o antissemitismo, o afastamento do “bolchevismo cultural”, o nacionalismo exacerbado, a estrutura de hierarquia militarizada, o autoritarismo, o simbolismo e o ocultismo, enfim, complexidades específicas e notórias de um movimento ideológico com uma profundidade que afasta qualquer tentativa de ementa perfeita.

O nazismo, no Brasil, já foi tolerado inclusive como partido. Até o desenrolar das monstruosidades ocorridas na segunda grande guerra, havia sucursais do nacional-socialismo, como centro de culturas alemãs da época, espalhadas por mais de uma dezena de estados. Aliás, como se sabe, políticos como Getúlio Vargas e Flores da Cunha nutriam admiração pelos ideais à época propagados na Alemanha. Nos dias de hoje, há, incompreensivelmente, resquícios desses saudosistas do nazismo, que sonham em registrar o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Brasileiros (PNSTB), cujos ideais se espelhariam nos do Führer.

O ditador Adolf Hitler, notório esteta, quando jovem — época pouco gloriosa de sua biografia, em que foi recusado pela Academia de Arte de Viena — pintava aquarelas e as vendia nas ruas. Confessava ser obcecado pela ópera “Rienzi”, de Wagner — a história de um plebeu que tinha por objetivo enfrentar a oligarquia e assumir o controle político, se utilizando, para tanto, de sua incrível oratória. Além disso, era vegetariano e amava sua cadela Blondi. A ascensão, consolidação e queda de seus ideais são notórias e prescindem de maiores relatos, eclipsando qualquer uma das humanizações relatadas. Sua identidade peculiar e trejeitos, no entanto, fazem dele uma figura ímpar e, de certo modo, caricatural.

Pois bem. Acusar alguém de ser fascista ou compará-lo a Hitler é tentar estabelecer uma relação impossível e, de certo modo, incompreensível. É um rótulo que despreza todo o contexto histórico e natural de diferentes períodos. A alcunha é apenas uma maneira de agredir o oponente com uma ofensa intangível, ainda que, para isso, deva ser utilizada uma ginástica mental falaciosa e com nome definido: reductio ad hitlerum. Como argumento falho, acaba se tornando uma arma para que, por exemplo, um autoritário possa facilmente se portar como vítima e conseguir fortalecer seus propósitos, uma vez que se sabe ser injusto o que lhe atribuem. O correto, na verdade, seria chamá-lo apenas pelo que evidentemente é: autoritário.

Fazer recair o peso de uma ideologia com as consequências catastróficas do holocausto sobre algo ou alguém é lhes atribuir uma responsabilidade que é bem pouco provável que realmente carreguem. Até os próprios adeptos de uma retomada dos ideais nazistas fogem dessa caracterização, como os partidários do PNSB, que renegam o antissemitismo e a ideia de superioridade racial. Nada pode ser mais leviano e desprovido de argumentos que comparar alguém a Hitler, cujas idiossincrasias não podem ser encarnadas por outrem, por mais que se queira. A banalização do epíteto, além de temerária e infundada, termina por desrespeitar a dor de quem realmente sofreu ou ainda sofre com os traumas ainda ecoantes do terrível pesadelo das décadas de 30 e 40.

Toda ação exige uma resposta adequada, e todo movimento histórico, por mais semelhante que possa parecer a outro, exige uma rotulação própria. Ainda que eclodam pelo mundo movimentações mais à direita, atraídas pelo autoritarismo e o conservadorismo, não se pode atribuir a qualquer adversário a pecha de nazista por puro deleite simplista. Contemporizar de forma inteligente é saber que novos movimentos exigem novos nomes, e o apego mental a termos já existentes apenas evidencia uma prática que flerta com a ofensa pela ofensa.

Por essa razão, Hitler e o nazismo devem ficar no passado, escondidos nos escombros de um período indigesto e — oxalá! — irrepetível, para que, assim, os algozes jamais possam ser confundidos com as verdadeiras vítimas.