Chaves é melhor do que Friends

Chaves é melhor do que Friends

Os memes são o Id da humanidade. Não existem filtros morais para o meme. Não existe Superego para o meme. Se algo se torna meme é porque representa uma verdade quintessencial, mesmo que não seja uma verdade de Diário Oficial. Geralmente, são fatos incômodos, do tipo que muitos preferem ignorar, ridicularizar, condenar ou mesmo combater.

Recentemente, circulou na rede um meme que poderia ser descrito da seguinte maneira: a foto de um muro pichado com as palavras “Chaves é melhor que Friends”. Muitas pessoas que compartilharam esse post tiveram o cuidado de escrever “trago verdades”. Trata-se de psicologia reversa mambembe. A estratégia é conhecida. Escrever “trago verdades” é o mesmo que escrever “não leve a sério, estou zoando” ou “é isso mesmo, só que não”. É uma espécie de cinto de segurança da sociabilidade virtual, permite que você faça um comentário polêmico sem correr o risco de ser patrulhado, hostilizado ou perder seguidores. O tom de brincadeira ameniza o impacto. Mas a informação foi passada. O elefante foi colocado na sala.

Pulsa como uma ferida aberta.

“Chaves é melhor que Friends”.
Que bobagem…

“Chaves é melhor que Friends”.
Nunca…

“Chaves é melhor que Friends”.
Se bem que…

“Chaves é melhor que Friends”.
Não, não pode ser…

“Chaves é melhor que Friends”.
Ou pode?

“Chaves é melhor que Friends”.
Vixi Maria, é verdade!

Sim, “Chaves” é melhor, muito melhor do que “Friends”. Trago oito verdades que provam essa afirmação. Oito, o mesmo número do apartamento onde morava o Chavinho.

1

“Chaves” é atemporal, “Friends” é datado. Quando estreou, em 1971, “Chaves” já apresentava certa estética anacrônica como parte da proposta. A vila encontra-se em um limbo temporal, existe em algum lugar do passado. Por outro lado, “Friends” foi concebido como um programa que representasse os anseios de uma época. O resultado é que 25 anos depois a estética “Verão 90” impregna cada segundo de cada episódio. É uma “contemporaneidade” ultrapassada no nível usar pochete com paletó. 

2

O humor de “Chaves” é universal, enquanto parte do humor de “Friends” se perde na tradução. Não é por acaso que passadas tantas décadas ainda rimos das mesmas piadas em “Chaves”. O humor físico tem ritmo perfeito e as falas, provavelmente, funcionam igualmente bem em inglês, francês, chinês e javanês. Grande parte do humor de “Friends” depende da identidade do espectador. Não adianta reclamar. Se você não for um jovem adulto nova-iorquino da década de 1990, conhecer todo o jargão, gírias e referências dessa época e extrato social, fatalmente vai perder nuances e sutilezas de muitos diálogos cômicos. Obviamente, o principal é compreendido, mas não tudo. Aceite, a geografia, o tempo e o espaço estão contra você.  

3

O elenco de “Chaves” é mais versátil que o de “Friends”. Esse ponto é indiscutível. Tirando Jennifer Aniston, que fez uma boa carreira em comédias românticas, e Courteney Cox, que foi a repórter de “Pânico”, nenhum outro membro do elenco de “Friends” destacou-se em outros personagens. Paralelamente, sabemos que Roberto Bolaños, o intérprete do menino Chaves, também é o super-herói Chapolin, o professor Chapatín, o ladrão Chómpiras e muitos outros tipos. Ramón Valdés, o Seu Madruga, também é Tripa Seca, Racha-Cuca, o pirata Alma Negra e o sofisticado Conde Terra Nova. A própria María Antonieta de las Nieves, a Chiquinha, representava de damas em perigo até mulheres fatais.

4

As tretas de bastidores de “Chaves” são muito mais interessantes do que as de “Friends”. O Quico namorou a Dona Florinda antes da Dona Florinda se casar com o Chaves. Quico saiu do programa e passou a assinar Kiko porque Chaves era o proprietário legal do nome de seu personagem. Pelo mesmo motivo, Chaves processou Chiquinha por estar se apresentando com sua criação. Enquanto isso, em “Friends” o mais interessante que acontecia era o elenco pedir cada vez mais dinheiro e os produtores, depois de relutarem um pouco, aceitarem sempre. Isso é o banal sexo e drogas de sempre. Sono…  

5

As lendas urbanas envolvendo “Chaves” são cabulosas. Quem não se lembra do boato que durou vários anos sobre o elenco inteiro de “Chaves” ter morrido em um acidente de avião? E as especulações sobre o cenário de “Chaves” ser assombrado? E os episódios perdidos de “Chaves”? E a história sobre a vila do Chaves ser uma representação do inferno? E a banda Ramones ter sido batizada em homenagem ao nome original de Seu Madruga, Don Ramón? E qual a lenda urbana sobre “Friends”? Desconheço. Se você souber de alguma, escreva nos comentários, amiguinho.

6

Os personagens de “Chaves” são muito mais icônicos que os de “Friends”. Quantas camisetas com personagens de “Friends” você viu pelas ruas nos últimos tempos? E quantas com a turma do Chaves? Seu Madruga é praticamente o novo Che Guevara. Há até o Che Madruga. Se camisetas não te conversem, tente os bordões: tem escutado muita gente falar “how you doing?” por aí? Compare com “ninguém tem paciência comigo”, “você não vai com minha cara?” ou “não se misture com essa gentalha”. Ainda não se convenceu? Então pergunte para sua avó quem é Phoebe Buffay. Depois pergunte quem é a Bruxa do 71. Vamos ver qual personagem ela conhece.

7

As participações especiais em “Chaves” foram mais marcantes do que as de “Friends”. Sim, é verdade que Bruce Willis, Júlia Roberts e Brad Pitt participaram de “Friends”, mas isso foi mero detalhe em suas carreiras estelares. Você ainda se lembra de Júlia como a linda mulher, Bruce como o duro de matar e Brad como um monte de outras coisas: o cara do “Clube da Luta”, o caipira caçador de nazistas, o vampiro vegano e até o dublê que bateu no Bruce Lee. Diferentemente, Héctor Bonilla teve uma carreira longeva em novelas mexicanas, mas foi imortalizado pelos poucos minutos que passou na vila do Chaves. 

8

Os temas tratados em “Chaves” são mais sérios e profundos do que os de “Friends”. Os dois seriados são comédias. Mas, como ensinou o mestre Aristófanes, o tom humorístico pode e deve ser usado para tratar e denunciar as maiores mazelas da humanidade. “Chaves” retrata a questão das crianças abandonadas, do desemprego, da solidão na velhice, bullying, crise na educação, recomeçar a vida após a viuvez, solidariedade entre vizinhos, perdão, inveja, ciúme, medo, violência e muito mais. Do que trata “Friends”? Da vida burguesa de jovens adultos americanos viciados em cafeína? Seus problemas amorosos e profissionais? Sei… é isso mesmo que você está querendo defender? Depois reclama do muro…

Reconheça amigo, o cafezinho caseiro da Dona Florinda é mais saboroso que o servido no Central Perk. Isso daria um bom meme.