Franceses vigiavam exilados brasileiros para o regime militar

Franceses vigiavam exilados brasileiros para o regime militar

Em “Liberdade Vigiada”, o historiador Paulo César Gomes analisa e os encontros e desencontros entre o governo ditatorial brasileiro e a democracia francesa entre 1964 e 1979

Não me pergunte sobre a Ditadura Militar! Não estudei seriamente o assunto, meu conhecimento sobre o tema é de segunda mão, livresco, superficial e estetizado. Tenho consciência de minha ignorância. Mesmo assim assumo a pretensão de ter uma certeza e filiar-me a uma opinião. A certeza é: a culpa foi de Jânio Quadros. A opinião é: Sobral Pinto tinha razão. O bom e velho jurista, que se definia como um “republicano radical”, mesmo sendo um cristão conservador defendia ateus comunistas acusados pelo Regime quando entendia que a causa era justa. Sobral Pinto é meu escudo de bom-senso em meio a esse emaranhado.   

Li alguns livros, diversos artigos, assisti reportagens, filmes de ficção e documentários sobre o Regime Militar. Parece-me que a maioria dos produtos culturais envolvendo o período esbarram na questão do envolvimento pessoal e emocional de seus realizadores, em função da participação ativa dos próprios, de parentes ou de amigos nos eventos narrados. Acabam sendo mais testemunhos, desabafos ou denúncias do que reflexões críticas. Essas perspectivas podem gerar boas obras estéticas, mas nem sempre temos objetividade nas informações, em função do ponto de vista adotado. Fica a sensação de que até que todos os diretamente envolvidos, além de seus parentes de primeira ou segunda geração, tenham partido, a maioria dos trabalhos sobre o tema estão condenados ao partidarismo, ao juízo de valor.

Liberdade Vigiada — As Relações Entre a Ditadura Militar Brasileira e o Governo Francês: Do Golpe à Anistia (Record, 560 páginas) de Paulo César Gomes

Certamente existem aspectos que são indiscutíveis. Foi um golpe? Claro que foi, primeiro um golpe civil, dado pelo Congresso, seguido de um golpe dentro do golpe aplicado pelos militares. Houve tortura? Certamente. Ocorreu desrespeito aos direitos individuais? Óbvio que sim. Outros temas são escorregadios. O golpe poderia ter sido evitado? Não sei, considerando o despreparo de Jango. Os generais-presidentes eram gênios do mal? Improvável, com e sem ironia. Os militantes que lutavam contra a ditadura eram impolutos guerreiros pela liberdade? Dificilmente, sem nenhuma ironia. Qual a real dimensão da censura? Aqui a coisa fica escorregadia, é difícil precisar. E o tal conceito de ditabranda? Discutir isso é dançar em terreno minado. E a diplomacia brasileira? Nossos diplomatas foram mesmo “isentões”? Não tenho a menor ideia. Mas não me julguem, eu sei quem sabe.

No melhor estilo “genuíno” de ser, entrego o nome sem maiores pudores: trata-se de Paulo César Gomes, autor de “Liberdade Vigiada — As Relações Entre a Ditadura Militar Brasileira e o Governo Francês: Do Golpe à Anistia”, publicado pela editora Record. O livro é resultado de uma pesquisa de doutorado em História, desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paulo César Gomes, nascido em Brasília, apesar de jovem, é um especialista no tema. Em 2014 publicou, também pela Record, o livro “Os Bispos Católicos e a Ditadura Militar Brasileira: A Visão da Espionagem”, e é editor do site “História da Ditadura”, no qual apresenta artigos, resenhas e depoimentos em vídeo sobre os anos de chumbo.

Em linhas gerais, “Liberdade Vigiada — As Relações Entre a Ditadura Militar Brasileira e o Governo Francês: Do Golpe à Anistia” discute os encontros e desencontros entre o governo ditatorial brasileiro e a democracia francesa entre 1964 e 1979, por meio do estudo sistemático de milhares de páginas de documentos diplomáticos, reportagens, livros e biografias em ambos os lados do Atlântico. Essa breve descrição não consegue abarcar todo o esforço hercúleo de pesquisa necessária para chegar ao excelente produto final. Todo esse material perscrutado foi necessário para defender a polêmica tese de que “o funcionamento do Itamaraty, de acordo com a lógica autoritária e repressiva do regime militar, é irrefutável. Essa constatação permite asseverar que a memória forjada pelo próprio Ministério — segundo a qual o órgão e suas representações no exterior, ao longo da ditadura, teriam permanecido incólumes às práticas obscuras adotadas sistematicamente pelas autoridades brasileiras de então — não corresponde às evidências históricas”. O mesmo vale para o lado francês. Paulo César Gomes demonstra como a democrática e aberta sociedade francesa não recebia os exilados brasileiros sem desconfiança. Na expressão que dá nome ao livro, eles estavam livres, poderiam tomar café na Champs-Élysées e visitar a Torre Eiffel, mas não eram simples turistas ou hóspedes. Na verdade, eram constantemente monitorados por agentes do Estado, que reportavam suas observações às autoridades brasileiras. Viviam, literalmente, uma liberdade vigiada.

Paulo César Gomes

Algumas partes são particularmente instigantes, como a descrição do Tribunal Bertrand Russell II, quando se tentou denunciar internacionalmente os atos de barbárie cometidos pelo governo ditatorial brasileiro, mas que gerou pouquíssima repercussão fora dos núcleos da militância da esquerda. O mesmo vale para a onda de preocupação gerada pelas especulações acerca de uma cena negativa à imagem brasileira no filme “Estado de Sítio”, dirigido por Costa-Gravas. Ou a descrição da desastrada passagem de Carlos Lacerda pela França, no que deveria ser uma missão diplomática para explicar aos europeus o que se passava no Brasil, demonstrando a dificuldade de diálogo entre as figuras centrais do Golpe civil-militar. Lacerda, por conta de uma coleção de frases explosivas, habilmente coletadas pelo autor, ganhou a antipatia eterna do general Charles de Gaulle, que quase cancelou uma visita oficial ao Brasil. O general veio, mas evitou Lacerda a todo custo. Essas passagens contêm certo humor que talvez seja involuntário, mas que enriqueceram muito a leitura da obra. 

A despeito da sofisticada análise das instituições, tanto francesas quanto brasileiras, alguns dos melhores momentos do livro mostram a atuação de indivíduos que participaram ativamente do processo. Vemos personagens como Adhemar de Barros, Juscelino Kubitschek, Delfim Netto e muitos outros diante do Leviatã que se tornou o Estado Brasileiro, muitas vezes sendo engolidos por ele.

O texto de Paulo César Gomes é preciso, informativo e econômico. Em função da amplidão do tema, nem tudo pôde ser aprofundado, mas a cada página vemos a tese sendo construída e corroborada. É um trabalho de excelência, praticamente despido de partidarismos ingênuos. Como escreveu Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da UFRJ e orientador do doutorado de Paulo César Gomes, no prefácio: “depois de tantos anos como orientador, aprendi que há algo de inato no talento”. Paulo César Gomes fez um trabalho de história unindo pragmatismo de pesquisador e talento de narrador.

Seu maior mérito foi revelar os labirintos kafkianos do Itamaraty. Saímos do livro convictos de que não lemos mais uma apologia aos guerrilheiros, tampouco uma mea culpa dos militares. Os diplomatas apresentados são indivíduos que tinham suas consciências, mas que, profissionais que eram, aceitaram agir como engrenagens de uma máquina em movimento. Hannah Arendt manda lembranças. Sobral Pinto puxa as orelhas.