As sereias não existem. O preconceito, sim

Todas as vezes, sem exceção, que uma pessoa negra é escolhida para fazer o papel de alguma personagem notoriamente branca, há discussões intermináveis sobre a legitimidade da escalação. É uma situação corriqueira, muito comum mesmo. Os argumentos de fidelidade ao personagem e de desconstrução da infância do público logo surgem para servir de escudo argumentativo, defendendo que uma obra cinematográfica, por exemplo, deveria se manter presa à original. Mas será mesmo que é apenas isso?

A internet é campo fértil para todo tipo de debate, e na defesa de posições há sempre uma intensidade feroz, que pode assustar os desavisados. Nessa toada, quando houve o anúncio de que a atriz Halle Bailey seria a protagonista do filme “A Pequena Sereia”, uma enxurrada de críticas — positivas e negativas — se fez presente na rede mundial de computadores. Para se ter uma noção exata, a tag #NotMyAriel figurou na primeira posição mundial no Twitter durante todo o dia do anúncio.

Nas redes sociais de Bailey, foi necessária uma medida mais drástica. A jovem atriz teve que bloquear os comentários do seu Instagram, já que houve uma invasão de milhares de pessoas se lamentando, ofendendo e xingando a moça. Era como se a garota, de apenas 19 anos, fosse a culpada pela destruição dos sonhos de quem queria ver uma ruiva representando a Ariel da versão live action. Nada mais representativo dos tempos que vivemos.

O primeiro filme da Disney sobre a simpática sereia data de 1989. Ruiva e de olhos claros, a personagem teria sido inspirada no conto de Hans Christian Andersen, “Den Lille Havfrue”, de 1837. É uma história dinamarquesa clássica. No país, aliás, há uma estátua da pequena sereia sentada em uma pedra à beira do mar, na capital, Copenhague. Talvez por isso tenham surgido os protestos dos ferozes defensores da identidade visual do filme exigindo uma maior fidelidade à sereia da animação tradicional, já que a Dinamarca é um país escandinavo, com uma população predominantemente branca.

O curioso de toda essa situação, a bem da verdade, é que pouco ou nenhum espanto ocorre quando a situação é inversa, a não ser por parte de grupos engajados. Há algum tempo, um desses programas de humor ácido que passavam aos domingos na televisão brasileira representou, em um de seus quadros, um africano. Era um ator branco famoso, todo pintado — a antiga e conhecida prática do blackface — que só conseguia se comunicar com sussurros animalescos e se movimentava como um homem das cavernas. Essa lamentável apresentação, claro, pouco ou nada repercutiu.

Não é incomum que atores brancos interpretem personagens negros. Ou asiáticos. Ou indígenas. Basta uma pesquisa básica na internet para constatar isso. Um exemplo é o filme “Quebrando a Banca”, que é baseado em fatos reais. O escalado para o papel principal foi Jim Sturgess, ator britânico — e branco. O aluno brilhante da vida real tinha ascendência chinesa. Alguém se incomodou com a falta de fidelidade? E Russell Crowe como Noé, no filme de 2014? Elizabeth Taylor como Cleópatra? Nestes e em outros casos, é muito raro que haja maiores questionamentos.

Voltando a Halle Bailey, sua escolha foi comemorada por boa parte do público. A questão da representatividade foi bastante martelada: afinal Ariel, ainda que inspirada em um conto dinamarquês, nada mais é do que uma sereia, ser de existência imaginária que pode, por isso mesmo, ter qualquer forma ou origem. Sem desprezar os argumentos de fidelidade dos realmente mais apegados à imagem e sem generalizações desnecessárias, apenas na observação do comparativo injusto, pode-se dizer que o apego às características da representação original, comparado à falta de exigência nos casos narrados acima, pode denotar um preconceito velado pelo fato de, desta vez, a protagonista ser negra.

No mais das vezes, faça um exercício mental sobre situações semelhantes. Feche os olhos e responda: quais as características físicas do Papai Noel? E de Jesus Cristo? E da grande maioria das princesas da Disney? Não é preciso divagar muito para perceber a falta de representatividade negra em nosso cotidiano. E a superação dessa ausência, com a integração paulatina e progressiva de negros de poder em nossa visão diária, talvez seja mais difícil e dolorosa para algumas pessoas, por ser questão histórica. Porém, acredite, é medida mais do que necessária. É urgente, humana e precisa.

Em 2018 foi inaugurada, na mesma Dinamarca de Andersen, uma estátua de Mary Thomas. Ela foi uma das líderes da revolta caribenha contra a colonização dinamarquesa no século 19 e está sentada, no monumento, na mesma posição em que Huey P. Newton, o fundador do Partido dos Panteras Negras, aparece em uma foto icônica de 1967. Sim, Mary era negra. A sua estátua é a primeira representação pública de uma mulher negra no país escandinavo. Agora, em Copenhague, há uma estátua de uma mulher negra e que existiu, em carne e osso, rivalizando em atenção com a da pequena sereia do conto. Assim como Halle Bailey, que, nas mentes e corações da geração atual, será a nova sereia dos cinemas, ainda que haja narizes torcidos e saudosos da sereia ruiva original de 1989. E como isso é importante! #SheIsMyAriel