Pinochet batia na rua e era espinafrado em casa pela mulher

O general, cuja ditadura matou mais de 3 mil pessoas, falava grosso na rua e piava fino em sua residência. Lucía Hiriart perseguia suas amantes e militares

O regime ditatorial comandado pelo chileno Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006) tem uma história contraditória. Do ponto de vista econômico, foi liberal e contribuiu para modernizar o Chile. Muitos dos acertos dos governos posteriores derivam de medidas de reorganização do Estado e liberalização da economia em sua longa gestão (1973-1990). Analistas de esquerda costumam esconder os méritos de sua administração, mas o fato é que, sob Salvador Allende, a economia do país praticamente estagnou. Pode-se dizer que os acertos do general-presidente têm a ver com o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra. A ajuda é um fato. Mas presidentes de outros países receberam apoio semelhante; no entanto, as economias locais não deslancharam. Agora, do ponto de vista político, Pinochet comandou uma ditadura brutal. Calcula-se que pelo menos 3 mil pessoas foram mortas e centenas foram exiladas e presas. Não há avanço econômico que justifique o fim da democracia e o assassinato de cidadãos. Acrescente-se que muitos não foram mortos em combate. Na verdade, foram executados pelos militares.

Porém, se Pinochet era brutal na rua, não era o chefe em sua própria casa. No livro “Doña Lucía — La Biografía no Autorizada” (Ediciones B), a jornalista Alejandra Matus, que viveu no exílio, conta que o ditador comia na mão de sua mulher, a implacável María Lucía Hiriart Rodríguez do Pinochet. A biografia, como diz o título, não é autorizada — no Brasil, se fosse sobre a mulher do general-presidente Costa e Silva, Iolanda, ou sobre as peripécias de Chico Buarque e Caetano Veloso, artistas notáveis, não seria publicada.

Biografia mostra a mulher de Augusto Pinochet, Lucía Hiriart, como estrategista política e revela que o ditador não mandava em casa e aceitava suas ordens

O livro provocou polêmica no Chile e na Argentina, foi resenhado por Carolina Rojas, do jornal argentino “Clarín”. Antes do golpe, quando Pinochet era oficial, Lucía Hiriart batia pesado: “Pouca coisa! Milico! Nunca vamos sair deste buraco” (o casal morava em Antofagasta, que ela comparava ao inferno). Cabisbaixo, o futuro ditador “suportava cada uma das discriminações”. Eles tinham cinco filhos e não havia serviço na cidade. Não viajavam e eram obrigados a levar uma vida anódina. Para escapar dos gritos frequentes, Pinochet corria para alguma praça ou escondia-se no seu escritório. Enquanto o militar era acomodado, Lucía Hiriart queria ser alguém na sociedade. Queria ascender socialmente.

Ao pesquisar a vida do casal, em busca de aferir a tese de que, por trás de um grande homem, há uma grande mulher, Alejandra Matus acabou descobrindo e revelando uma mulher complexa e um militar, em casa, meio poltrão. Ao arrancá-la da sombra do general supostamente durão, a biógrafa a exibe como uma estrategista política. Nas suas origens, Lucía Hiriart não era uma mulher de direita. “Sua família, seu pai e seus tios, foi representante de profundas convicções democráticas, antimilitaristas e laicas. (…) Ela atua como esposa, buscando o seu bem-estar e o de sua família”, diz Alejandra Matus.

A repórter Carolina Rojas pergunta: “Mulheres como Marina Callejas (esposa de Michael Townley) ou as integrantes da Dina [polícia política chilena] foram mais cruéis que os próprios homens. Qual ingerência Lucía teve no golpe de Estado e na posterior repressão?” Alejandra Maltus diz que a mulher de Pinochet foi “implacável, arbitrária e pouco compassiva”. A ditadura teve amplo apoio feminino, acrescenta.

Para cada Carmen Hertz, que é apresentada pela jornalista como antítese da mulher de Pinochet, havia muitas Lucías. “Ela foi importante para que Pinochet traísse seus camaradas, aceitasse a morte de pessoas próximas, a tortura de familiares e até o exílio de sua própria prima”, conta Alejandra Maltus.

A biógrafa assinala que Manoel Contreras, o chefe da polícia política, era hábil e manipulou os temores de Lucía Hiriart. Sem ele, a mulher de Pinochet se sentia “vulnerável”. “Ela saiu de casa quando Pinochet tirou Contreras do governo. Ela estava disposta a romper seu casamento”, relata Alejandra Matus.

Contraditória, Lucía Hiriart era moralista, defendia a família e a maternidade, mas “foi uma mãe pouca atenta”, registra a biógrafa. “Na ditadura, Lucía divulgou o discurso de que as mulheres deveriam cuidar da casa e dos filhos. Mas não gostava de cozinhar e de cuidar de seus filhos.” Foi uma mãe ausente. Os filhos foram criados por empregados, pois Pinochet também era pouco afeito a cuidar de crianças.

Alejandra Matus diz que Lucía Hiriart mantinha uma relação de amizade com a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher. Durante a Guerra das Malvinas, Pinochet e a mulher ficaram ao lado da Inglaterra. Quando Pinochet foi detido em Londres, Thatcher o apoiou. A mulher do ditador admirava a política europeia por sua elegância e pelo costume de tomar chá. A chilena apreciava boas roupas, como as do estilo Chanel.

Embora tivesse certo medo da mulher, sobretudo de sua fúria, Pinochet tinha muitas amantes. Relato da biógrafa: “Pinochet era um homem infiel e, no poder, o foi ainda mais”. Às vezes, tinha três amantes no mesmo período, uma em Arica, outra em Concepción e outra em Punta Arenas. Seus seguranças, além de protegê-lo, arranjavam-lhe mulheres. Lucía Hiriart, como agora não podia conter o poderoso Pinochet, atacava as amantes e aliados do ditador. “Ela destituía de ministros a oficiais infiéis”, não importando se eram ou não poderosos.

Por trás da Lucía Hiriart “frívola” e “tirana”, Alejandra descobriu alguma “inteligência política”. Como primeira-dama, desenvolveu um trabalho social — cuidando dos pobres. Se a ditadura teve um “braço popular”, anota a biógrafa, isto se deve a Lucía Hiriart. “E as pessoas que eram consideradas suas protegidas estavam seguras.” A jornalista sugere, porém, que não se pode separar Lucía Hiriart de Pinochet. “Lúcia foi quem o incentivou a trair” (os aliados no governo de Salvador Allende), “defendeu o prolongamento da ditadura e a repressão aos oposicionistas.”

Aos 97 anos, Lucía Hiriart mora no Chile. Vive bem, numa mansão de 3 mil metros quadrados, em um bairro nobre, mas sem o luxo e o poder dos tempos da ditadura. Ela adorava ser vista como alguém respeitável. Recebe a visita de um filho ou de um neto ocasionalmente e poucos dos aliados políticos aparecem para visitá-la. Ela tenta retomar, na Justiça, 25 propriedades deixadas por Pinochet.

No livro “A Cerimônia do Adeus”, Simone Beauvoir conta os últimos tempos do filósofo Jean-Paul Sartre, relatando sua decadência física. O relato é cruel, pode até parecer uma vingança tardia de mulher desprezada, mas nada é mais sartriano e beauvoiriano. A vida íntima deles era vista e apresentada como uma coisa pública. Quando Pinochet estava detido e doente, em Londres, Lucía Hiriart o insultava com frequência — chamando-o de “velho” e “enfermo sem poder”. “Ela perdeu todo o respeito pelo marido”, relata a biógrafa. Alejandra Matus afirma que, para a ex-poderosa, não é fácil cuidar do outro, tratá-lo com decência nos piores momentos. Ela “só quer receber, não é capaz de lidar com a fragilidade alheia”. Tanto que, segundo a jornalista, nunca se preocupou com as vítimas do regime militar. Numa entrevista de 2003, disse que as pessoas que morreram no Chile estavam participando de uma guerra e que poderiam ter morrido muito mais. De fato, houve confrontos — nos quais mortes podem até ser justificadas —, mas centenas foram fuziladas sem qualquer culpa formalizada e julgamento judicial.