A narrativa de “Girl”, de Lucas Dhont, parte de um ponto em que o cotidiano de Lara, interpretada por Victor Polster, já está marcado por um percurso interno mais complexo do que qualquer instituição formal consegue acompanhar. Ela ingressa em uma escola de balé sem esconder a ambição de alcançar níveis técnicos que exigem disciplina extrema, e o filme se sustenta justamente nesse contraste entre um corpo que insiste em impor limites e uma mente que tenta reorganizar esses limites com rigor quase filosófico. A diretora de turma observa sua dedicação, mas a história não deposita qualquer idealização sobre a trajetória da personagem. Acompanhamos apenas o esforço silencioso, o tipo de esforço que raramente encontra espaço para ser compreendido fora da intimidade.
A mudança de escola, a adaptação ao novo apartamento e o convívio com colegas que nem sempre sabem lidar com diferenças estruturam o período em que Lara intensifica o uso de hormônios, etapa que, no longa, funciona como uma espécie de ponto de inflexão. Arieh Worthalter, como o pai, tenta manter uma presença firme, embora ciente de que sua intervenção tem limites. O irmão mais novo, Milo, surge como lembrança de uma vida que ainda não sofreu tantas fissuras. É nesse núcleo familiar que o filme encontra sua sustentação mais sólida, ainda que não aprofunde tanto as consequências emocionais desse processo para além de Lara.
Ao longo das aulas, o balé se torna uma lente precisa para observar a relação entre dor física e tentativa de superação. O sangue nas sapatilhas e a exaustão acumulada revelam um tipo de desgaste que contrasta com a maneira contida como Lara enfrenta tarefas básicas, como ir ao banheiro ou tomar banho. Essa tensão entre a exigência externa da dança e as exigências internas da transição produz algumas das sequências mais contundentes, e Polster trabalha cada gesto com uma contenção que evita sentimentalismo. Sua interpretação constrói uma personagem que racionaliza o sofrimento sem perder a dimensão humana, algo raro em produções que tratam temas identitários com excesso de explicações ou com dramatizações previsíveis.
A discussão sobre o fato de o ator não ser trans atravessa opiniões do público, mas o filme, em si, não estabelece qualquer tese normativa sobre representatividade. A narrativa circunscreve-se ao universo de Lara e não tenta estender sua experiência para categorias amplas demais. Essa escolha pode incomodar, especialmente para quem espera respostas generalizantes. No entanto, o longa parece mais interessado em examinar a experiência singular de alguém que tenta adequar corpo e expectativa pessoal, sem presunção de totalidade. A questão da legitimidade do elenco, portanto, funciona mais como debate externo do que como elemento do próprio enredo.
Quando a diretora da escola intensifica as cobranças técnicas, fica evidente que o impulso de Lara para dançar não possui justificativas cuidadosamente enunciadas. Falta à personagem uma motivação explicitada, e essa ausência cria um certo vazio dramático. Outras figuras orbitam a história, mas raramente se desenvolvem o suficiente para criar contrapontos, o que reduz as possibilidades de compreender como a vida familiar e social interfere em suas decisões. Mesmo assim, a construção minimalista das relações impede que a narrativa se desvie de seu foco inicial: acompanhar uma jovem que tenta avançar, embora cada passo pareça exigir um preço desproporcional.
O desfecho reforça essa sensação de percurso interrompido. A sequência final não organiza as tensões acumuladas nem oferece qualquer horizonte definido. O corte abrupto da trajetória ecoa a percepção de que certas jornadas não se encerram por completo, apenas se reorganizam em novas fases. A ausência de uma conclusão clara não enfraquece a experiência; ela sublinha a instabilidade de quem tenta construir um caminho enquanto enfrenta limites técnicos, biológicos e sociais. A força de “Girl” está justamente em expor essa interseção entre determinação e vulnerabilidade sem recorrer a fórmulas explicativas. O filme termina deixando perguntas que não pedem solução imediata, apenas disponibilidade para enxergar o que permanece em suspensão.
★★★★★★★★★★


