Está na Netflix: o filme que apaga os Beatles — e acerta no coração Divulgação / Universal Pictures

Está na Netflix: o filme que apaga os Beatles — e acerta no coração

Jack Malik não tem nada de extraordinário. Interpretado por Himesh Patel com naturalismo e um certo cansaço acumulado, é um músico frustrado, quase invisível. Trabalha duro, mas não brilha. Não encontra a canção certa. Não encontra público. Quando o mundo sofre um apagão global, não só de energia mas de memória, Jack descobre que é o único que se lembra dos Beatles. Ninguém mais conhece “Hey Jude”, nem “Let it Be”, nem “Yesterday”. Ele começa a tocá-las. E o mundo o ouve.

A trama, escrita por Jack Barth e reescrita por Richard Curtis, parte de uma premissa absurda, mas a executa com leveza. Danny Boyle, diretor de “Quem Quer Ser um Milionário” e “Trainspotting”, evita qualquer tom épico. Escolhe a simplicidade. O apagão não é explicado. Não há cientistas, não há governo. Há Jack. E há um vazio cultural no qual ele entra como quem encontra uma casa aberta.

O filme brinca com esse vazio. O humor surge da tensão entre a grandeza da obra original e a mediocridade do intérprete. Jack não é fraudulento. Mas tampouco é profundo. Ele reconhece o valor das músicas, mas não compreende sua origem. Canta sem história. E isso importa.

Ed Sheeran aparece como ele mesmo, em participação que serve como comentário pop. Convida Jack a abrir um show. Admira o talento que vê, mas não percebe o que está por trás. Sheeran representa o pop contemporâneo: mais preocupado com performance do que com contexto. Nesse mundo, Jack encaixa. E prospera.

Lily James interpreta Ellie, empresária e interesse romântico de Jack. Sua presença dá ao filme um eixo afetivo, embora o roteiro trate a personagem com certa negligência. Ela é a memória afetiva que permanece, a pessoa que sabia quem Jack era antes de tudo. Ela vê o que ele está se tornando. E não sabe se deve segui-lo.

A crítica ao culto da celebridade está ali, ainda que sutil. Jack atinge o topo com músicas que não são suas. Vive um dilema moral. Mas ninguém cobra. Quando finalmente decide contar a verdade, não há crise. A plateia não reage. O mercado não colapsa. O público não se importa. A música venceu a autoria.

Há uma cena em que Jack encontra John Lennon. Não o Lennon dos Beatles, mas um homem velho, anônimo, que vive em paz à beira-mar. A conversa entre eles é o ponto alto do filme. Lennon diz que viveu bem, que amou, que foi amado, que não se arrepende. É uma vida sem fama. Uma vida suficiente. Jack ouve, e entende que talvez esteja perseguindo a coisa errada.

“Yesterday” evita julgamento moral. Não pune Jack. Também não o celebra. A pergunta que o filme deixa é mais incômoda: quem somos quando ninguém mais sabe de onde veio o que cantamos?

O roteiro toca em temas relevantes. A cultura como memória coletiva. A dependência tecnológica. A substituição da experiência pela reprodução. A ideia de que algo só existe se for reconhecido em tempo real. E o fato de que talvez não sejamos mais capazes de reconhecer o valor de uma obra sem seu contexto histórico.

A presença dos Beatles paira o tempo todo. Não há reverência gratuita. Há reconhecimento. As músicas funcionam, mesmo sem seus criadores. Mas algo se perde. Falta o peso da história. Falta a dor que compôs cada nota.

No fim, Jack devolve as músicas. Publica tudo de graça. Admite que mentiu. E o mundo segue. O filme não oferece redenção. Oferece um retrato.

“Yesterday” não é sobre Beatles. É sobre ausência. Sobre como a memória cultural pode ser apagada, substituída, e ninguém notar. Sobre como a história pode ser reencenada por qualquer um que esteja por perto. É um comentário sutil sobre o tempo em que vivemos. Um tempo em que a autoria é negociável, e o original, dispensável.

Filme: Yesterday
Diretor: Danny Boyle
Ano: 2019
Gênero: Musical/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★