A livraria onde os livros ficam em banheiras e gôndolas para não afundar — e ela existe mesmo

A livraria onde os livros ficam em banheiras e gôndolas para não afundar — e ela existe mesmo

Chove em Veneza, mas não como sentença. A chuva aqui desce como quem esquece, sem aviso, sem pressa, sem violência. Apenas se apresenta. O som que ela faz ao tocar os paralelepípedos da cidade é mais interior do que exterior. Há ecos vindos das paredes de cal úmida, reverberações que se escondem nas arcadas, nos vãos das gôndolas atadas. Um homem de boina empilha livros dentro de um casarão de esquina. Poderia ser um depósito. Poderia ser um galpão. Não tem fachada clara, não tem letreiro luminoso. Tem água. E dentro dela, livros. Livros como sobreviventes.

A Libreria Acqua Alta talvez seja uma das livrarias mais fotografadas do mundo, mas isso não diz nada sobre ela. É justamente o tipo de lugar que, apesar da exposição, ainda guarda um mistério bruto. Localizada na Calle Lunga Santa Maria Formosa, a poucos metros do canal que banha o sestiere de Castello, ela escapa de todas as categorias conhecidas. Não é uma livraria tradicional, tampouco é um sebo comum. É, antes de tudo, uma metáfora encarnada, uma alegoria montada com banheiras, canoas, gôndolas partidas, enciclopédias obsoletas e gatos. Muitos gatos.

Enciclopédias obsoletas viraram parede contra a água. A escada de livros é hoje atração entre os visitantes e gatos

Luigi Frizzo é o nome por trás do caos. Nascido na província de Vicenza, nos anos 1940, passou a juventude entre Treviso e Milão, trabalhando com comércio de livros raros, arte e antiguidades. Chegou a Veneza nos anos 1970, fugido da lógica industrial de livrarias-modelo e das obrigações fiscais que tornavam o comércio editorial algo cada vez menos encantador. Fundou a Acqua Alta em 2004, oficialmente, mas os primeiros sinais do que ela viria a ser são anteriores. Durante anos, acumulou volumes descartados, doações de bibliotecas públicas, restos de feiras literárias e estoques inteiros de livrarias que faliram na região do Vêneto. O acervo que ocupa hoje os quase 150 metros quadrados da loja foi, em grande parte, resgatado do esquecimento ou da água.

A água. Não há como falar da livraria sem mencioná-la. O nome do lugar, Acqua Alta, remete diretamente ao fenômeno que, há séculos, define o ritmo e a precariedade da vida em Veneza: a maré alta. Entre os meses de outubro e março, os ventos do Adriático empurram o nível do mar contra as fundações da cidade, invadindo becos, praças e interiores. A grande cheia de 1966, a mais grave do século 20, submergiu a cidade com uma lâmina de 194 centímetros de água salgada. Para muitos, foi a prova de que Veneza era insustentável. Para Luigi, foi o contrário. “Foi ali que entendi que os livros precisavam aprender a nadar”, diria ele anos depois.

A ideia de que os livros pudessem flutuar não é uma metáfora na Acqua Alta. É técnica. São dezenas de banheiras antigas servindo de prateleiras, todas posicionadas em alturas calculadas para resistir à invasão da maré. Canoas de carga formam corredores inteiros. Há uma gôndola posicionada bem no centro da sala principal, ocupada por dicionários de francês, almanaques soviéticos e manuais de botânica dos anos 1950. Alguns volumes permanecem envoltos em capas plásticas. Outros estão manchados, enrugados, quase em decomposição, mas ainda legíveis. O tempo ali não é cronológico. É climático.

Luigi, de voz rouca e gestos econômicos, circula pelo ambiente como quem pastoreia um caos consciente. Fala italiano com sotaque da região de Vicenza, mas também se arrisca em francês, espanhol e inglês, todos com aquela tonalidade arranhada de quem aprendeu vendendo. Quando perguntado se há um catálogo, responde: “Claro que há. Aqui, no meu bolso”, aponta para o peito. Sabe de cor a localização de livros que nunca vendeu, mas não responde a perguntas sobre best-sellers contemporâneos. “Tem o último do Ferrante?” “Não. Ali tem um Dante que ninguém mais quer.”

Fundada em 2004, a Acqua Alta tornou-se um ícone de resistência em Veneza, desafiando o tempo e a maré alta

A frase, dita sem ironia, condensa a lógica da livraria. Ali não se busca o livro certo. Busca-se o livro sobrevivente. Aquele que sobrou. O que escapou da água, da indústria, do algoritmo. É uma livraria fundada no erro, mantida na teimosia e sustentada por um improviso estrutural. Não há Wi-Fi, não há playlists ambiente, não há café com leite vegetal. Há silêncio. E há som: o estalo de capas que secam, o miado dos gatos, o sussurro de visitantes estrangeiros tentando não tropeçar em caixas cheias de volumes em romeno.

Segundo estimativas, porque não há registros oficiais, o acervo da Acqua Alta ultrapassa os 15 mil volumes. Há primeiras edições de poetas venezianos do século 19, fotolivros japoneses da década de 1980, guias de navegação fluvial do Danúbio e uma coleção impressionante de quadrinhos italianos. Muitos exemplares são vendidos a cinco euros. Outros, a cem. Tudo depende do humor do dono, da condição do livro e da história que ele carrega. Não há leitura digital. Não se aceita cartão. Apenas dinheiro e conversa.

A livraria não está isolada em sua condição de resistência. Veneza perdeu mais da metade de suas livrarias independentes nas últimas três décadas. A gentrificação, o turismo predatório e a crise do mercado editorial transformaram a cidade num cenário, mas com cada vez menos atores. A Acqua Alta, nesse sentido, tornou-se mais que uma livraria: tornou-se personagem. É fotografada, filmada, citada em guias e documentários. Já apareceu em reportagens da BBC, da CNN, do “Corriere della Sera” e em vídeos virais do YouTube. Mas continua sendo, no fundo, uma casa velha cheia de papel.

Na parte de trás do imóvel, há um pátio aberto onde os livros fazem muro. Enciclopédias e almanaques empilhados formam uma barreira improvisada contra as águas. Não se trata apenas de uma estética: é uma solução arquitetônica. Livros como tijolos. Memória como cimento. Uma escada construída a partir de volumes inutilizados leva até um ponto de observação do canal. De cima, o absurdo se revela: aquela estrutura que parece ruína é, na verdade, fortaleza.

Na livraria, livros flutuam: são guardados em banheiras, canoas e gôndolas, como defesa contra as enchentes

Durante os picos de visitação, mais de quinhentas pessoas passam pela loja por dia. A maioria chega por curiosidade. Alguns saem em cinco minutos. Outros permanecem por horas. Um garoto marroquino lê um Kerouac rasgado. Uma senhora japonesa folheia um dicionário latim-italiano de 1892. Um casal de Estocolmo se pergunta por que há uma cadeira dentro d’água. Não é para sentar. É para fotografar. Ou para resistir.

A cidade parece condescender com a existência da Acqua Alta. Ainda que fiscais sanitários a visitem ocasionalmente — há ratos, há mofo —, a livraria goza de uma espécie de imunidade tácita. Ela é parte do folclore local, do teatro urbano. Luigi, hoje com mais de 80 anos, já disse que “o dia em que os livros pararem de boiar, será o dia em que Veneza afundou de vez.”

Num canto discreto, perto da porta dos fundos, repousa um exemplar umedecido de “Os Anos”, de Annie Ernaux. Está sobre uma capa plástica, mas a umidade já venceu parte da lombada. Ao lado, um bilhete manuscrito: “Se cair na água, leia mais rápido.” Talvez seja esse o último conselho possível: leia antes que a cidade se dissolva. Antes que os livros se apaguem. Antes que a maré leve tudo.

Revista Bula

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