Não há cidade sem ruído que não pareça mais nítida depois da chuva. O Porto, àquela hora pálida da manhã, com suas calçadas gastas e gárgulas de pedra amolecida, sussurrava um tipo muito particular de beleza. A beleza que não chama. A beleza que espera. Era ali, entre panificadoras ainda fechadas e vitrines de papelaria adormecida, que uma porta vermelha se abria como um vinco entre realidades. Entrar não era turismo. Nem culto. Era outra coisa. Talvez uma hesitação.
Não é exagero chamá-la de a mais bonita do mundo, embora essa definição reduza o que ali se passa. A Livraria Lello, no número 144 da Rua das Carmelitas, não se limita a celebrar a leitura. Encarna uma experiência física de memória projetada. O mundo contemporâneo, tão repetitivo em seus espaços de consumo, não está preparado para esse tipo de comoção estética. Há um vitral no teto. Há uma escadaria em espiral que parece líquida de tão viva. Mas isso já foi dito antes. E repetido em vídeos, postagens, hashtags. O que raramente se conta é o que acontece com o silêncio das pessoas quando elas entram. Algo é suspenso. Algo recua dentro do corpo. Um pacto se forma, não declarado, de que ali não se grita, não se corre, não se fala alto. Como se os livros, ainda que fechados, impusessem respeito.
Mais que beleza, o espaço revela uma inteligência arquitetônica que beira o mágico sem jamais escorregar para o decorativo. A curva da escada não é só fotogênica. É uma curva que engana o tempo e dá a sensação de retorno, mesmo quando se sobe. Os detalhes do teto não servem apenas como ornamento. São armadilhas sensoriais que desaceleram o olhar. Talvez essa desaceleração, essa vertigem lenta, seja o que mais nos comove. Estamos desacostumados a nos demorar. A Lello exige isso de nós.

Há uma narrativa fácil, e perigosamente sedutora, que liga a livraria à autora de Harry Potter. J.K. Rowling viveu no Porto nos anos 1990, e muito se especula sobre a escadaria como inspiração para Hogwarts. A Lello, com sabedoria comercial, nem confirma nem nega. E não precisa. A literatura que ali habita não pertence a uma saga específica, mas ao gesto anterior ao texto: o gesto de abrir uma capa. Em tempos de leitura apressada, de livros que viram post, de post que já vem com resumo, estar num espaço que homenageia o objeto livro com tamanha solenidade é quase um ato radical.
Claro que há filas. Claro que há ingressos pagos, e turistas, e celulares em punho. Mas até isso se curva ao peso histórico do lugar. Fundada oficialmente no edifício atual em 1906, a Livraria Lello carrega uma linhagem que remonta à “Livraria Internacional de Ernesto Chardron”, criada em 1869, na Rua dos Clérigos, por um livreiro francês que, antes de morrer aos 45 anos, teve o mérito editorial de publicar autores como Camilo Castelo Branco. Após sua morte precoce, a casa passou pelas mãos de Lugan & Genelioux e, mais tarde, de Mathieux Lugan, expandindo seu acervo com a incorporação de outras livrarias do Porto.
Foi apenas em 1894 que os irmãos José Pinto de Sousa Lello e António Lello adquiriram a antiga Chardron, consolidando o nome Lello & Irmão como editora e comércio livreiro de referência. O novo edifício, inaugurado em 13 de janeiro de 1906 com projeto do engenheiro Francisco Xavier Esteves, causou comoção no meio cultural português da época, reunindo nomes como Guerra Junqueiro, Abel Botelho e José Leite de Vasconcelos. Ali, o que poderia ser apenas um comércio revelava-se um templo de madeira e luz, dedicado ao livro como forma de arte.
Desde então, a livraria atravessou ditaduras, revoluções, sucessões familiares complexas e a longa curva descendente da indústria editorial europeia no século 20. Resistiu ao desinteresse, às falências alheias, às décadas em que o objeto-livro parecia ter sido reduzido a ruído de fundo. A Lello não se curvou. Persistiu como um corpo barroco em meio a um século que preferiu a leveza funcional. Não é prática. Não é minimalista. Não é eficiente. Ela é densa, labiríntica, ornamental, anacrônica por convicção. Um organismo de madeira talhada e vitrais filtrados que respira arte nova. Tudo nela desafia o algoritmo. E essa talvez seja sua forma mais radical de permanência.

Em sua trajetória de resistência, a Livraria Lello também se reinventou. Passou por três restaurações significativas: em 1995, uma intervenção voltada à estabilização estrutural e preservação de elementos originais; em 2016, um restauro mais amplo, com modernização dos sistemas de conservação e iluminação; e em 2017, um ajuste minucioso, que valorizou detalhes art nouveau e aprimorou a experiência do visitante. Cada uma dessas intervenções respeitou o espírito da casa, renovando-a sem descaracterizá-la.
Na contramão do desinteresse por espaços físicos de leitura, ela se tornou, paradoxalmente, um dos pontos turísticos mais visitados de Portugal. Isso pode soar contraditório — uma livraria lotada, em silêncio, como se fosse igreja. Mas talvez só pareça contraditório para quem esqueceu que a leitura sempre foi, também, um ritual. E que o turismo, em sua forma mais pura, é busca por espanto. Não há como não se espantar ali.
O acervo, muitas vezes eclipsado pela arquitetura, é sólido. Há primeiras edições raras, edições bilíngues, traduções cuidadosas, selos próprios. A Lello funciona também como editora, apostando em nomes consagrados e novos autores. Há, portanto, conteúdo por trás da forma. Mas não é isso que mais impressiona. O que impressiona é o fato de que mesmo diante do frenesi turístico, o espaço consegue preservar algo de secreto. É como se cada visitante, ao subir aquelas escadas, carregasse consigo a ilusão íntima de ter descoberto algo que ninguém mais viu.
E talvez aí esteja o maior feito da Livraria Lello. Ela cria, em meio à multidão, uma sensação de particularidade. É uma arquitetura que conversa com o íntimo. Cada detalhe parece ter sido colocado ali para o seu olhar, e só para ele. Não é sobre selfie. É sobre presença.

Ao sair, é difícil lembrar o que se viu primeiro. A luz filtrada pelo vitral? A espiral de madeira que desafia a gravidade? Os livros empilhados como torres de um idioma antigo? Ou o cheiro? Sim, o cheiro. Madeira, tinta, pó limpo. O tipo de cheiro que não se reproduz em museu nem em loja de conveniência.
Há uma pergunta que se repete ao longo do tempo: por que ainda visitar livrarias? Por que entrar num espaço onde tudo que se vende pode ser comprado online, em segundos? A resposta talvez esteja ali, na Rua das Carmelitas, em frente àquela porta vermelha. Porque há coisas que não se entregam. Que não cabem em caixa. Porque há espaços que devolvem ao corpo a consciência de sua própria lentidão.
É difícil escrever sobre a Lello sem escorregar para a reverência exagerada. Mas talvez ela mereça isso. Talvez mereça ser dita como um exagero necessário. Um lembrete de que a beleza, às vezes, ainda vence.