Há filmes que não se limitam à narrativa, ao gênero ou ao entretenimento. Eles se tornam espelhos — às vezes desconfortáveis, quase sempre reveladores. E embora não tenham sido feitos com fins terapêuticos, acabam acessando lugares onde a linguagem racional não alcança. O cinema, nesse sentido, é mais do que arte: é uma ferramenta de escuta, de expressão indireta, de elaboração emocional. E alguns títulos — especialmente quando tratados com a delicadeza da análise terapêutica — ajudam a decifrar silêncios, iluminar contradições, nomear traumas e elaborar perdas.
Na Netflix, em meio ao ruído dos lançamentos e dos algoritmos, há obras que se destacam não por serem populares, mas por sua profundidade afetiva. Elas não trazem fórmulas prontas, nem mensagens reconfortantes. O que oferecem é algo mais sutil: espaço. Para sentir, para duvidar, para lembrar, para se ver em fragmentos — mesmo quando o que se vê incomoda. Não são filmes fáceis. Mas justamente por isso permanecem.
Alguns lidam com maternidades feridas, outros com o luto nu, com o fim do amor ou com a brutalidade dos sistemas. Nenhum deles propõe respostas; todos, porém, sugerem perguntas que demoram a calar. São obras que terapeutas — não raro — indicam, não como prescrição, mas como possibilidade: de refletir, de chorar o que ainda não foi chorado, de tocar partes internas que a vida cotidiana tende a anestesiar.
Assistir a esses filmes não resolve. Mas pode abrir. E, para quem está disposto a escutar o que sente, isso já é começo suficiente.

Leda é uma mulher aparentemente em paz, professora universitária, viajando sozinha para um destino ensolarado à beira-mar. Mas quando observa uma jovem mãe na praia com sua filha pequena, algo se desloca. O que parecia apenas uma viagem solitária se transforma em um mergulho desconcertante nas memórias da própria maternidade de Leda — marcada por ausências, fraturas e escolhas difíceis. O filme acompanha essa tensão com um cuidado íntimo, quase claustrofóbico, revelando como a idealização da figura materna pode ser cruel com as mulheres reais. Não há catarse, nem redenção, apenas a crueza de sentimentos ambíguos: amor, raiva, exaustão, desejo de fuga. Maggie Gyllenhaal dirige com sutileza desconcertante e Olivia Colman entrega uma performance que incomoda na medida certa. Um retrato raro da mãe que ama, mas também deseja desaparecer — e que não é punida no roteiro por essa contradição. Um filme que desorganiza certezas e, no processo, abre espaço para outras verdades.

Uma perda. E depois dela, tudo o que sobra. “Pieces of a Woman” acompanha Martha, uma mulher que vivencia um parto traumático em casa e precisa lidar com o luto em sua forma mais crua: não aquela do choro desesperado, mas do silêncio que invade tudo. A dor aqui não é espetáculo — ela se insinua nas conversas interrompidas, no afastamento conjugal, nos corpos que se tocam com dificuldade, nos olhares que não se encontram. O filme é desconfortavelmente honesto em retratar como o trauma se instala na vida cotidiana e desestabiliza não só relações, mas também a própria percepção de si. Vanessa Kirby entrega uma atuação devastadora, feita de contenção e nuances — o que torna cada gesto ainda mais poderoso. Para muitos terapeutas, o filme é uma ferramenta de reflexão sobre perda, culpa, isolamento emocional e a lenta reconstrução da identidade depois do colapso. Uma história sem respostas, mas com espaço para respirar.

“História de um Casamento” não é exatamente sobre o fim de um casamento — é sobre tudo o que existe entre o início e o fim, e como essas camadas se desgastam, se transformam e, por vezes, se perdem. Charlie e Nicole são artistas, pais, companheiros — e agora ex-companheiros tentando manter alguma dignidade no processo de separação. O filme acompanha esse processo com uma delicadeza brutal, capturando as pequenas crueldades do amor que já foi íntimo e agora é burocrático. Há amor, ainda — mas também frustração, mágoas que não foram ditas no tempo certo, expectativas que se calcificaram em ressentimento. Com diálogos precisos e atuações comoventes de Adam Driver e Scarlett Johansson, o longa nos obriga a pensar sobre como nos comunicamos, como escutamos (ou deixamos de escutar) e o que significa, de fato, dividir a vida com alguém. Um filme sobre rupturas, mas também sobre aquilo que permanece, mesmo depois do fim.

Imagine uma prisão vertical, onde os presos são distribuídos em níveis e a comida desce — uma única mesa por dia, de cima para baixo. Essa é a premissa perturbadora de “O Poço”, mas o filme logo escapa da metáfora óbvia e mergulha em questões que tocam diretamente a psique coletiva: o que fazemos quando somos colocados à prova? Como a escassez afeta o senso de moralidade? Quem somos quando ninguém está olhando — e quando todos estão famintos? A narrativa é seca, claustrofóbica e brutal, mas provoca reflexões que extrapolam o contexto da ficção. Terapeutas costumam apontar o filme como uma alegoria poderosa das estruturas sociais, da desigualdade e dos pactos silenciosos que mantemos com o sistema. Assistir a “O Poço” é confrontar-se com o próprio instinto — de sobrevivência, de resistência, de acomodação — e perceber que, às vezes, o que mais assusta não é o outro, mas aquilo que somos capazes de aceitar.