Não é só sobre tempo. É sobre ruído. A sensação de que nada mais se mantém inteiro por mais de cinco minutos, porque tudo chama, vibra, apita. Há sempre uma mensagem esperando, uma atualização automática, um vídeo que começa sozinho. E, mesmo quando não há nada, a mão vai. Por hábito, por falta, por puro impulso. O celular virou um reflexo, e esquecer que ele existe por algumas horas já parece um luxo, uma façanha, quase um milagre. Mas há livros que conseguem isso. Não pela trama mirabolante ou pelo suspense estratégico, mas porque criam uma presença mais forte que o mundo. Eles constroem uma voz, uma cadência, uma temperatura que nos puxa devagar, e quando a gente percebe, já não quer mais sair. Ou melhor, esquece de querer sair. E essa diferença muda tudo. Porque o que importa, no fim, não é o quanto o livro prende, mas o que ele silencia. O que deixa de ser urgente. Os personagens desses livros não gritam. Eles sobrevivem, hesitam, escapam por pouco. São homens e mulheres que carregam culpas, fogem de cerimônias, escrevem cartas falsas, enterram árvores ou se sentem irrelevantes diante da própria vida.
Alguns são jovens demais, outros velhos demais, e quase todos estão deslocados, como se o mundo os tivesse deixado um pouco para trás ou não os tivesse alcançado ainda. Mas é justamente aí, nesse intervalo estranho, que eles ganham força. Porque não são personagens para admirar. São pessoas que a gente acompanha de perto, com empatia e desconforto. E talvez seja isso que os torna tão difíceis de largar. Porque não há truque. Há uma espécie de gravidade moral, ou de melancolia sutil, que vai se acumulando. E de repente, tudo que estava ao redor parece raso demais. Inclusive o celular. Inclusive o tempo. Inclusive a pressa. Livros assim não servem para entreter. Servem para lembrar que ainda é possível se perder em silêncio, e que esse silêncio pode, por algumas horas, ser mais forte do que qualquer notificação.

Ruben Blum é o único professor judeu de uma universidade protestante e esquecida do interior dos Estados Unidos. Quando recebe a missão de avaliar a candidatura de um historiador israelense — um certo Benzion Netanyahu — para uma vaga acadêmica, sua vida doméstica e institucional entra em curto-circuito. A visita de Netanyahu com a família inteira — ruidosa, inadequada, cômica em excesso — transforma um procedimento burocrático em um colapso privado. Narrado em primeira pessoa, com ironia sutil e autoconsciência intelectual, o romance embaralha memórias, ressentimentos culturais, política internacional e vaidades acadêmicas em camadas que se iluminam e se sabotam o tempo todo. Blum, erudito tímido, hesitante e deslocado até mesmo entre os seus, observa o mundo à sua volta com um cansaço meio resignado, meio envergonhado. Mas por trás da comédia judaica — cheia de interrupções, ruídos e sobreentendidos — o que emerge é um retrato ácido sobre identidade, lugar social, expectativas históricas e o teatro das instituições. A figura de Netanyahu, pai do futuro primeiro-ministro, surge como um fantasma deslocado entre séculos: alguém que, mesmo sem querer, força todos à sua volta a se posicionar. O desconforto é inevitável. Mas o livro não ri à toa. Ri, talvez, porque não há mais como explicar nada sem tropeçar no que se é.

Nove vidas, espalhadas no tempo e no espaço, convergem lentamente em torno de um mesmo eixo: as árvores. Não como símbolo, mas como presença viva, ativa, silenciosa — e em risco. A narrativa acompanha engenheiros, artistas, biólogos, soldados e ativistas cujas trajetórias individuais são alteradas, direta ou indiretamente, pela relação que mantêm com o mundo vegetal. Em vez de um único protagonista, o romance aposta numa construção coral, entrelaçando vozes diversas que, à medida que se aproximam umas das outras, revelam uma história maior — e, talvez, mais antiga que a humana. Escrito em terceira pessoa, com variações sutis de tom e registro entre os capítulos, o livro exige atenção: suas transições não obedecem à pressa da ação, mas ao tempo paciente do crescimento e da escuta. O passado ressurge em memórias, heranças genéticas, decisões mal compreendidas. O presente arde em conflitos éticos, ameaças políticas e descobertas científicas. E o futuro aparece, por vezes, como um lugar onde já não é mais possível voltar. Há beleza, indignação e alguma esperança na forma como essas histórias se amarram — mas nenhuma ilusão de redenção fácil. Ao propor que olhemos para cima, e para fora de nós mesmos, o romance questiona o que ainda somos capazes de salvar, e o que já deixamos morrer por distração.

Arthur Less tem quase cinquenta anos, uma carreira literária morna e um convite para o casamento do ex-namorado sobre a mesa. Para não encarar a cerimônia — e talvez para não encarar a si mesmo — ele aceita uma série de convites medíocres para eventos literários ao redor do mundo. O que se segue é uma fuga geográfica, afetiva e levemente cômica, atravessando países, idiomas e desencontros, narrada com ironia contida e melancolia disfarçada de leveza. Arthur se enreda em situações absurdas, encontros desconcertantes e reflexões enviesadas sobre sua própria irrelevância, enquanto a narrativa o acompanha com uma voz que, só mais tarde, revelará o afeto verdadeiro que esconde. Ao longo da viagem, surgem acasos, mal-entendidos, reflexos de uma juventude que parece distante — e também uma vergonha persistente que nunca se resolve por completo. A homossexualidade de Arthur, tratada com normalidade e delicadeza, não é foco nem pano de fundo: é apenas parte de quem ele é, como a hesitação crônica, a autocrítica feroz e o desejo, sempre adiado, de ser levado a sério. O livro caminha entre o riso e a tristeza sem fazer alarde, oferecendo, ao fim, algo raro: uma comédia romântica madura, sem garantias, sem lições, e com espaço suficiente para o constrangimento e a beleza dividirem o mesmo parágrafo.

Olive não é exatamente a protagonista — mas está em quase tudo. Professora aposentada em uma cidade litorânea do Maine, ela aparece, reaparece ou simplesmente paira nas margens de treze capítulos que formam um romance disfarçado de coletânea. Às vezes, está no centro; outras vezes, basta uma lembrança, uma palavra cruzada, uma ausência desconfortável. O que une essas histórias é uma tensão emocional silenciosa, construída com uma prosa econômica e precisa, que jamais dramatiza o sofrimento — apenas o reconhece. Olive é dura, impaciente, quase insuportável. Mas também lúcida, frágil e surpreendentemente sensível. Entre suicídios, adultérios, ressentimentos e pequenas alegrias, o livro compõe um retrato implacável do cotidiano doméstico e da velhice. Cada história é uma fresta: um casal em silêncio, um filho que se distancia, uma mulher que se esvazia, um estranho que escuta. E em muitas delas, de algum modo, Olive está lá, mesmo quando ninguém a quer por perto. O olhar da narrativa nunca julga — apenas observa com desconforto e ternura o que resta depois que o tempo passa. Não há grandes epifanias. Só a percepção, às vezes incômoda, de que é possível passar a vida inteira com alguém — e mesmo assim nunca sabê-lo por completo. Com Olive, essa dúvida se torna quase uma certeza.

Oscar é gordo, tímido, dominicano, nerd até o osso — e desajustado em tudo que se espera dele. Criado em Nova Jersey, entre a dureza da mãe, o desprezo dos colegas e a paixão por histórias de dragões, ele sonha com um amor impossível e uma escrita gloriosa, enquanto carrega sobre si um peso mais antigo: a fukú, maldição que persegue sua família desde os tempos da ditadura de Trujillo. Mas esta não é exatamente a sua história. É Yunior quem narra, com sarcasmo, afeto e digressões afiadas, costurando passado e presente, história pessoal e nacional, numa linguagem que mistura espanhol, gírias de rua e referências nerds com uma crueza que nunca abandona o afeto. Ao revisitar as gerações anteriores — a mãe dura, o avô sumido, a irmã rebelde — a narrativa revela não apenas o quanto Oscar é fruto de um trauma coletivo, mas também como sua sensibilidade anacrônica desafia o mundo ao redor. O tempo avança, os corpos se quebram, os vínculos se esgarçam, mas Yunior segue tentando entender o que levou Oscar tão longe — ou tão perto — do destino que recusava. O livro não pede heroísmo. Pede escuta, ironia e uma certa ternura exausta. Oscar, afinal, só queria amar.

Longe do lar, em meio à Guerra Civil americana, o senhor March escreve cartas doces e esperançosas às filhas, tentando protegê-las das verdades que o cercam. Mas seu cotidiano está longe da ternura: como capelão de um regimento da União, ele testemunha brutalidades, miséria, convulsões morais e o próprio colapso das ideias que o haviam sustentado até ali. Educado em princípios abolicionistas e guiado por um idealismo quase religioso, March chega ao campo de batalha como um homem convicto — e se vê desfeito diante do que encontra. Os horrores da guerra, a complexidade da escravidão vivida na pele dos libertos, o racismo mesmo entre aliados, a fome, a doença e a violência colocam em crise sua fé, sua ética e seu silêncio diante das omissões do passado. Narrado em primeira pessoa, com ritmo introspectivo e tom de confissão, o romance expande o universo de “Mulherzinhas” a partir da ausência: o pai que lá era só uma sombra aqui ganha voz, contradição e fraqueza. Ao longo de suas experiências, surgem lembranças da juventude, encontros decisivos com figuras históricas e um mergulho doloroso no que significa ser um homem bom em tempos irremediavelmente ruins. A esperança, se existe, não é redentora. Mas talvez insista em voltar — como as cartas que ele ainda escreve.

Em uma plantação na Virgínia, antes da Guerra Civil, Henry Townsend vive a contradição de ser um ex-escravizado que agora possui escravos. Filho de libertos, educado por um homem branco benevolente que o prepara para sucedê-lo como senhor, Henry vê sua ascensão como um triunfo pessoal — e também como um direito. Mas seu senso de ordem logo é posto à prova pela violência estrutural que o cerca, pelas perdas íntimas que o arrastam e pelo abalo moral que atravessa sua comunidade. Ao redor de sua história orbitam outras, que se entrelaçam e se chocam como peças vivas de uma estrutura opaca: homens que medem sua dignidade pelo domínio que exercem, mulheres que lutam para preservar fragmentos de autonomia, famílias esgarçadas por disputas de poder, promessas e fuga. Narrado em terceira pessoa, com saltos temporais que iluminam presente e futuro dos personagens, o romance abandona o heroísmo fácil em favor de uma observação precisa, quase documental, das escolhas que moldam uma sociedade dividida. A brutalidade da escravidão aparece não apenas nos castigos físicos ou na linguagem do domínio, mas no modo como ela reconfigura afetos, desejos e o próprio tempo das pessoas. Em sua complexidade silenciosa, a história de Henry revela o que permanece incontável: o que cada um perdeu ao aceitar perder o outro.